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Read Ebook: A Cidade e as Serras by Queir S E A De

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Ebook has 1208 lines and 65196 words, and 25 pages

--Que diabo, Z? Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de jantar. Talvez te tentes!

E, atrav?s da Bibliotheca, penetramos na sala de jantar,--que me encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, laccada, mais lustrosa e macia que setim, revestia as paredes, encaixilhando medalh?es de damasco c?r de morango, de morango muito maduro e esmagado: os aparadores, discretamente lavrados em flor?es e rocalhas, resplandeciam com a mesma lacca nevada: e damascos amorangados estofavam tambem as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentid?o de gulas delicadas, de gulas intellectuaes.

--Viva o meu Principe! Sim senhor... Eis aqui um comedoiro muito comprehensivel e muito repousante, Jacintho!

--Ent?o janta, homem!

Mas j? eu me come?ava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei quando Jacintho me desvendou que um era para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as fructas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salom?o, s? dois copos, para dois vinhos:--um Bordeus rosado em infusas de crystal, e Champagne gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador por?m vergava, sob o luxo redundante, quasi assustador d'aguas--aguas oxigenadas, aguas carbonatadas, aguas phosphatadas, aguas esterilisadas, aguas de saes, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados therapeuticos impressos em rotulos.

Elle derramou, por sobre toda aquella garrafaria encarapu?ada em metal, um olhar desconsolado:

--N?o... ? por causa das aguas da Cidade, contaminadas, atulhadas de microbios... Mas ainda n?o encontrei uma b?a agua que me convenha, que me satisfa?a... At? soffro s?de.

Desejei ent?o conhecer o jantar do Psychologo e do Symbolista--tra?ado, ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre laminas de marfim. Come?ava honradamente por ostras classicas, de Marennes. Depois apparecia uma sopa d'alcachofras e ovas de carpa...

--? bom?

Jacintho encolheu desinteressadamente os hombros:

--Sim... Eu n?o tenho nunca appetite, j? ha tempos... J? ha annos.

Do outro prato s? comprehendi que continha frangos e tubaras. Depois saboreariam aquelles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com gel?a de noz. E por sobremeza simplesmente laranjas geladas em ether.

--Em ether, Jacintho?

O meu amigo hesitou, esbo?ou com os dedos a ondula??o d'um aroma que s'evola.

--? novo... Parece que o ether desenvolve, faz afflorar a alma das fructas...

Curvei a cabe?a ignara, murmurei nas minhas profundidades:

--Eis a Civilisa??o!

E, descendo os Campos Elyseos, encolhido no paletot, a cogitar n'este prato symbolico, considerava a rudeza e atolado atrazo da minha Gui?es, onde desde seculos a alma das laranjas permanece ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aquelles pomares que ensombram e perfumam o valle, da Roqueirinha a Sandofim! Agora por?m, bemdito Deus, na convivencia de um t?o grande iniciado como Jacintho, eu comprehenderia todas as finuras e todos os poderes da Civilisa??o.

E, contemplaria a raridade d'um homem que, concebendo uma id?a da Vida, a realisa--e atrav?s d'ella e por ella recolhe a felicidade perfeita.

Bem se affirm?ra este Jacintho, na verdade, como Principe da Gran-Ventura!

--Que massada! E depois uma noite abominavel, enrodilhada em sonhos... Tomei sulforal, chamei o Grillo para me esfregar com therebentina... Uma s?cca!

Espalhava pela mesa um olhar j? farto. Nenhum prato, por mais engenhoso, o seduzia;--e, como atrav?s do seu tumulto matinal fumava incontaveis cigarretes que o resequiam, come?ava por se encharcar com um immenso copo d'agua oxygenada, ou carbonatada, ou gazoza, misturada d'um cognac raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Syracusa. Depois, ? pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e al?m uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta;--e reclamava impacientemente o caf?, um caf? de Moka, mandado cada mez por um feitor do Dedjah, fervido ? turca, muito espesso, que elle remexia com um pau de canella!

--E tu, Z? Fernandes, que vaes tu fazer?

--Eu?

Recostado na cadeira, com delicias, os dedos mettidos nas cavas do collete:

--Vou vadiar, regaladamente, como um c?o natural!

O meu sollicito amigo, remexendo o caf? com o pau de canella, rebuscava atrav?s da numerosa Civilisa??o da Cidade uma occupa??o que me encantasse. Mas apenas suggeria uma Exposi??o, ou uma Conferencia, ou monumentos, ou passeios, logo encolhia os hombros desconsolados:

--Por fim nem vale a pena, ? uma s?cca!

Accendia outra das cigarretes russas, onde rebrilhava o seu nome, impresso a ouro na mortalha. Torcendo, n'uma pressa nervosa, os fios do bigode, ainda escutava, ? porta da Bibliotheca, o seu procurador, o nedio e magestoso Laporte. E emfim, seguido d'um criado, que sobra?ava um ma?o tremendo de jornaes para lhe abastecer o coup?, o Principe da Gran-Ventura mergulhava na Cidade.

Eu arregalava os olhos para este transformado Jacintho. E sobretudo me impressionava o seu horror pela Multid?o--por certos effeitos da Multid?o, s? para elle sensiveis, e a que chamava os <>.

--Tu n?o os sentes, Z? Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! ? um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se installa no olfacto, e estraga para todo o dia o ar respiravel. ? um dito que se surprehende n'um grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de estupidez, e que nos fica collado ? alma, como um salpico, lembrando a immensidade da lama a atravessar. Ou ent?o, meu filho, ? uma figura intoleravel pela preten??o, ou pelo mau-gosto, ou pela impertinencia, ou pela rellice, ou pela dureza, e de que se n?o p?de sacudir mais a vis?o repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Z? Fernandes! De resto, que diabo, s?o as pequeninas miserias d'uma Civilisa??o deliciosa!

Tudo isto era especioso, talvez pueril--mas para mim revelava, n'aquelle chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devo??o. N'essa mesma tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo de cali?a parda, erri?ado de chamin?s de lata negra, com as janellas sempre fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. S? tijolo, s? ferro, s? argamassa, s? estuque: linhas hirtas, angulos asperos: tudo secco, tudo rigido. E dos ch?os aos telhados, por toda a fachada, tapando as varandas, comendo os muros, Taboletas, Taboletas...

--Oh, este Paris, Jacintho, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro bazar!

E, mais para sondar o meu Principe do que por persuas?o, insisti na fealdade e tristeza d'estes predios, duros armazens, cujos andares s?o prateleiras onde se apilha humanidade! E uma humanidade impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras baixas, bem envernisadas. A relles e de trabalho nos altos, nos desv?os, sobre pranchas de pinho n?, entre o p? e a tra?a...

Jacintho murmurou, com a face arripiada:

--? feio, ? muito feio!

E accudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:

--Mas que maravilhoso organismo, Z? Fernandes! Que solidez! Que produc??o!

Onde Jacintho me parecia mais renegado era na sua antiga e quasi religiosa affei??o pelo Bosque de Bolonha. Quando mo?o, elle construira sobre o Bosque theorias complicadas e consideraveis. E sustentava, com olhos rutilantes de fanatico, que no Bosque a Cidade cada tarde ia retemperar salutarmente a sua for?a, recebendo, pela presen?a das suas Duquezas, das suas Cortez?s, dos seus Politicos, dos seus Financeiros, dos seus Generaes, dos seus Academicos, dos seus Artistas, dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu pessoal se mantinha em numero, em vitalidade, em func??o, e que nenhum elemento da sua grandeza desapparecera ou deperecera! <> constituia ent?o para o meu Principe um acto de consciencia. E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuia todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!

--Para casa, depressa!

E era pela Avenida do Bosque, pelos Campos-Elyseos, uma fuga ardente das egoas a quem a lentid?o sopeada, n'um roer de freios, entre outras egoas tambem d'ellas super-conhecidas, lan?avam n'uma exaspera??o comparavel ? de Jacintho.

Para o sondar eu denegria o Bosque:

--J? n?o ? t?o divertido, perdeu o brilho!...

Elle acudia, timidamente:

--N?o, ? agradavel, n?o ha nada mais agradavel; mas...

E accusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus affazeres. Recolhiamos ent?o ao 202, onde, com effeito, em breve embrulhado no seu roup?o branco, diante da mesa de crystal, entre a legi?o das escovas, com toda a electricidade refulgindo, o meu Principe se come?ava a adornar para o servi?o social da noite.

E foi justamente numa d'essas noites que n?s passamos, n'aquelle quarto t?o civilisado e protegido, por um d'esses brutos e revoltos terrores como s? os produz a ferocidade dos Elementos. J? tarde, ? pressa Jacintho arrocheava o n? da gravata branca--quando no lavatorio, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jacto d'agua a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma nevoa densa de vapor quente abafou as luzes--e, perdidos n'ella, sentiamos, por entre os gritos do escudeiro e do Grillo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava. Sob os p?s o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas as for?as da natureza, submettidas ao servi?o de Jacintho, se agitassem, animadas por aquella rebelli?o da agua--ouvimos roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes electricos sulcaram faiscas amea?adoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a nevoa grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do port?o, attrahidas pela fumarada que se escapava das janellas, estacionava policia, uma multid?o. E na escada esbarrei com um reporter, de chap?o para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente <>

Domada a agua, clareada a bruma, vim encontrar Jacintho no meio do quarto, em ceroulas, livido:

--Oh Z? Fernandes, esta nossa industria!... Que impotencia, que impotencia! Pela segunda vez, este desastre! E agora, apparelhos perfeitos, um processo novo...

--E eu encharcado por esse processo novo! E sem outra casaca!

No domingo, muito cedo, o Grillo, que na v?spera escald?ra as m?os e as trazia embrulhadas em s?da, penetrou no meu quarto, descerrou as cortinas, e ? beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:

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