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Read Ebook: A Fome de Camões by Leal Ant Nio Duarte Gomes

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Ebook has 174 lines and 18839 words, and 4 pages

A FOME DE CAM?ES

Gomes Leal

A FOME DE CAM?ES

LISBOA

EDITORES

Empreza Litteraria Luso-Brazileira de A. Souza Pinto e Livraria Industrial de Lisboa & C.?

MDCCCLXXX

CANTO PRIMEIRO

TRAGEDIA DA RUA

Quando no mundo o Genio abandonado expira ? fome e ao frio, indignamente, um livido remorso ensanguentado sacode o mundo tenebrosamente. Como o arrepio d'um terror sagrado, alguma cousa grita intimamente: como uma voz terrivel que suspira nas cordas vingativas d'uma Lyra.

E essa Lyra ? s? feita d'amea?as. Essa Lyra ? s? feita de vingan?as. Essa Lyra s? falla de desgra?as, d'antigos crimes, de crueis lembran?as. Essa Lyra espeda?a e quebra as ta?as, calla os festins, e faz parar as dan?as, e essa Lyra ai! da tragica innocencia ? a Lyra terrivel da Consciencia.

E a Lyra diz: O que fizeste, ? mundo! das grandes almas unicas, sagradas, das grandes frontes d'um sonhar profundo que eram as frontes as mais bem amadas? O que fizeste d'esse abysmo fundo de vontades mais rijas do que espadas, d'esses simples e santos cora??es que faziam chorar as multid?es?

O que fizeste d'essas linguas d'ouro que sabiam pregar como os prophetas? Como enxugaste o seu comprido ch?ro? Como arrancaste as ponteagudas settas? O que fizeste, ? mundo! do thesouro que v?s homens mortaes chamais poetas: mas cujo nome d'harmonias bellas s? o sabem as Cousas e as Estrellas?

Deitaste ao lodo, ? rua, e aviltamento esses que adora a Natureza inteira, esmagaste entre as pedras o talento, os seus craneos quebraste, na cegueira! As suas cinzas espalhaste ao vento! Profanaste os seus louros na poeira! E repousam sem lastimas nem lousas os que viam as lagrimas das Cousas!...

Por isso me ouvir?s em toda a parte como um solu?o e um grito vingador, n'uma alta torre, atraz d'um baluarte, entre os festins, nas convuls?es do amor. Na paz, ou levantando o estandarte da guerra, escutar?s a minha D?r. Por que eu, ? mundo! guarda-o na lembran?a, --Eu sou a Lyra, e a minha voz Vingan?a!

E o mundo escuta, indefinidamente, a voz da Lyra a protestar terrivel. Ouve-a na sombra, ou pelo sol poente, se o vento dobra o cannavial flexivel, ouve-a nos sonhos, ouve-a intimamente, n'uma continua musica inflexivel, at? que emfim vencido n'esta li?a o mundo clama: Fa?a-se a Justi?a!--

Era uma noute livida e chuvosa, ermas as ruas, ermas as cal?adas. Nada cortava a solid?o brumosa, nem ais d'amor, nem gritos de facadas. Das nuvens colossaes acastelladas s?mente a meia lua silenciosa, boiava em morto ceu ermo d'estrellas, como um navio que perdeu as vellas.

Quem ? que cruza ? chuva e ? ventania, ? meia noute, as ruas solitarias? ?s tu santa Miseria, que de dia foges da luz do Sol, o pai dos p?rias? Ou ?s tu Fome ou Vicio, que sem guia, vaes nas noutes sem lua, mortuarias, provocar o Deboxe e os estrangeiros ? ba?a luz dos tristes candeeiros?

? Destino! ? Destino!--eu sei a historia de muitas das tragedias solu?antes, de muito nome que esqueceu a Gloria, de muitos prantos que cairam d'antes! Sei que riscam teus dedos flammejantes, como uma sina m?, muita memoria, e que nada ha maior e mais escuro do que o brilhante e o bronze do teu muro!

Mas n?o quero contar o drama agora do Brilhante, do Leque, e do Farrapo, da meretriz que no bordel desc?ra, do amor do Charco, do histri?o, do sapo; nem a far?a de sangue a toda a hora, do Ouro e do Velludo--o rico trapo, nem a sina immoral sinistra e crua da historia diabolica da Rua.

Um dia eu contarei a extranha lenda ? Destino! dos teus encantamentos, seguirei, passo a passo, a tua senda ? Miseria! e direi os teus tormentos. Para que a alma da Ral? aprenda, contarei os crueis temperamentos, Direi o Incesto a amamentar os filhos, e o Parricida a esvasiar quartilhos.

Um dia evocarei os teus mysterios, ? tragedia da Rua e os teus segredos, mais funestos que os tristes cemiterios, mais profundos que os bastos arvoredos: direi sonhos, desejos quasi ethereos, desejos que teem azas nos degredos, d'uma alma que ama o Azul, o Azul almeja, como a agulha da torre d'uma egreja.

Um dia esfiarei todo o rosario da Innocencia e da Fome aventureira, do Luxo, do Egoismo solitario, do Genio solu?ante na trapeira, da Virtude embrulhada em seu sudario, pedindo esmolla ? sua irm? rameira, e o Crime dando bailes d'apparato, em quanto o Justo expira no grabato.

Descobrirei as contas da Avareza junto ao esquife d'uma virgem bella, o Tedio bocejando ? lauta meza, a Fome da mansarda na janella, a Inveja ululando contra a preza, como uiva ? lua a lugubre cadella, e o Suicidio, nas manh?s geladas, espeda?ando o craneo nas cal?adas.

Um dia cantarei a ladainha da Desgra?a e da Forma triumphante, da Espada que tilinta na bainha, da Mascara que ri e passa avante, da Fome que ergue as m?os e se definha, do Leque, da Batina, e do Brilhante das lagrimas mortaes do eterno Entrudo, das miserias do Cancro e do Velludo.

Por que tem muito que cantar o imperio e o inferno da Carne e dos desejos, porque ? eterno e livido o mysterio da Morte. S?o eternos os almejos. Por que ha lagrimas do ber?o ao cemiterio, ha lagrimas no Amor e at? nos beijos, prantos communs e de grotescos tra?os nas miserias dos reis e dos palha?os.

Porque tem muito que cantar as scenas ? Rua! das extranhas odysseas das tuas festas, prociss?es serenas, do negro sangue que te agita as veias. Por que ha remorsos, lagrimas e penas entre os motins e os frenesins das ceias. Por que n'esta funesta e eterna far?a. ai! tanto chora o actor como o comparsa.

Por que ha bastantes cora??es vencidos, altos desejos que n?o mais voaram, sinistros ais e intimos gemidos lagrimas mudas que se n?o choraram. Sim, ha solu?os que n?o s?o ouvidos, lagrimas mortas que se congelaram, n'uma miseria, um abandono nobre como um enterro n'uma rua pobre!

Porque ninguem conhece onde termina o tregeito que r?, solu?a, engana, porque a eterna Mascara domina, e ? uma esfinge cada face humana. Porque a Morte em n?s ceifa uma ruina, quando nos rouba na aza deshumana, e esta mulher que ri com tanta gra?a, ? talvez uma lagrima que passa!

Mas agora eu s? conto o Irrevogavel, mais monstruoso do que um sonho ardente, conto a historia funesta, inexoravel, do Genio morto ? fome, indignamente. Quero narrar o que ? o innarravel! fazer sentir o que j?mais se sente, fazer chorar o choro masculino Do Genio contra a noute do Destino!

O Genio ? um archanjo refulgente que enrista a lan?a contra a escura Sorte, tem no seu gesto uma express?o potente, que diz: eu quero! e empallidece a Morte. Para o Vulgo porem vil inclemente, e o Destino esse cego antigo e forte, ? um guerreiro tragico e proscripto, e a fronte tem como um luar maldito.

Este vulto, portanto, que caminha altas horas, ao frio das nortadas, ? Cam?es que de fome se definha nas ruas de Lisboa abandonadas. ? Cam?es a que a Sorte vil mesquinha faz em noutes de fome torturadas, elle o velho cantor d'heroes guerreiros!... vagar errante como os vis rafeiros.

Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo, o seu amparo e seu bord?o no mundo, morreu-lhe o humilde companheiro antigo, no seu peito deixando um vacuo fundo. Hoje pois triste, velho, sem abrigo, faminto, abandonado e vagabundo, tenta esmollar tambem pelas esquinas. ? lagrimas!.. ? glorias!.. ? ruinas!..

Mas n?o estende o valoroso bra?o, que outr'ora trabalhou entre os guerreiros, a m?o recusa-se a suster o passo dos transeuntes raros, sobranceiros. A Fome roe-o, curva-o o can?asso. Cospem-lhe a neve, a chuva, os aguaceiros. ? cal?adas fataes! nas enxurradas vae muito fel de lagrimas choradas.

? Capit?es! ? Capit?es egoistas! duras velhas mais duras que o granito! ha caso mais sublime ?s vossas vistas que mais vos deva merecer um grito, mais negro, mais cruel para os artistas, mais sagrado, dramatico, infinito, que mais abale os nobres peitos francos que um Genio pobre e de cabellos brancos!?...

O Genio continua ? ventania a errar pelas ruas silenciosas, como um espectro que dissipa o dia, como as grandes estatuas dolorosas. Assim a noute vaga, na agonia dos martyres das noutes trabalhosas, at? que o sol jorrou pelas viellas, e ensanguentou os olhos das janellas.

Come?am-se a ouvir esses rumores das capitaes egoistas acordadas, a musica dos carros chiadores que chegam das aldeias retiradas. Recome?am as pombas seus amores sobre as brancas egrejas penduradas, e nas torres dos astros companheiras, a palpitar, nas glorias, as bandeiras.

Come?am-se a ouvir as matutinas musicas da cidade, e as alegrias dos gallos com as notas crystallinas dos sinos com extranhas simphonias. O sol lava de glorias as collinas as torres, os beiraes, as gelosias, e como a mo?a que um amante beija avermelham-se os vidros d'uma egreja.

Dos passaros retinem os gorgeios nas arvores, nas pontas dos eirados, os vis riachos, os lodosos veios, correm ralhando, ao sol, precipitados, os cavallos remordem os seus freios, v?o passando alde?es para os mercados, e atraz dos lentos carros os boieiros veem sombrios, graves, e trigueiros.

Somente ao Genio uma tristeza enorme entenebrece todos os ruidos, como um sombrio cora??o que dorme, que j? n?o tem nem sonhos, nem gemidos! S? sente uma saudade extranha, informe, como aroma dos tempos revolvidos, das grandes selvas, sombras e palmeiras quando o sol desce as ingremes ladeiras.

Os alde?es tisnados dos trabalhos, recome?ando as horas das fadigas, recordam-lhes os ?picos carvalhos a sombra, os bois, as sestas t?o amigas! Fazem lembrar-lhe as curvas dos atalhos, a ermida, a fonte, os fenos, e as cantigas, que elle escutara, pelas luas claras, ?s louras raparigas nas ce?ras!

Lembram-lhe a India, os templos monstruosos, com seus deuses terriveis, singulares, as arvores de fructos venenosos, as bastas selvas, os gentis palmares! Lembram-lhe os tigres ruivos, sequiosos, que v?o beber a rios como a mares, e pelas noites immortaes, eternas! o luar nas figueiras das cisternas

E elle quizera achar-se em alto monte, em cima tendo os astros por juizes, dizendo adeus ao sol no horisonte, acabar os seus dias infelizes: na boa terra M?e deitar a fronte e entre as vegeta??es, entre as raizes, misturar sua vida e acerbas dores com as almas das plantas e das flores!

Para o velho cantor eram fugidos ai! como luz que para sempre expira, os bellos tempos jovens e lusidos, as mulheres ideaes que o Amor inspira! Rotos, ? chuva, os tragicos vestidos, posta de parte, empoeirada a lyra, achava-se hoje n'uma rua, ? mundo, velho, faminto, pobre, e moribundo!

Sem ousar mendigar, como um vadio, vaga nas ruas da Cidade egoista. A tarde chega, o bello sol fugiu. A noute vem, que o cora??o contrista. Irrompe a lua sobre a verde crista d'um monte ao longe, e no lagedo, ao frio, o Genio cae emfim, hirto e sem falla, como um cadaver que se deita ? valla.

N'este momento uma mulher gigante, que pareceu sair d'um pesadello, pallida e triste, qual saudade errante, deixando ao vento as ondas do cabello, t?o magra como a Sombra, o seu semblante toldado d'um desgosto immenso e bello, chegou-se ao Genio hirto e abandonado, como a vis?o d'um sonho torturado.

E disse-lhe: Bem perto d'esta rua dar-te-h?o, ? mendigo, uma guarida, n?o dormir?s ? lividez da lua e ter?s leito onde acabar a vida. Se a Sorte t'esmagou, a Sorte crua, ergue a cabe?a pallida e abatida, e ri contente, ? triste, para a e?a, que em breve vai findar a tua pe?a!

A mulher ajudou a levantal-o. Cingiu o bra?o ao Genio moribundo. A Morte que passava em seu cavallo deu-lhe um sorriso livido e profundo. --O teu semblante, ? velho, d?-me abalo, disse a mulher. N?o ? vulgar no mundo! Dize-me pois que cousas tenebrosas te h?o cavado essas rugas dolorosas!

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<> --Cala-te! disse a Sombra magra e triste, Cala-te, ? Genio immenso, desgra?ado! E com sorriso d'express?o fatal a Sombra concluiu--? o hospital!

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