Read Ebook: Aves Migradoras by Almeida Fialho De
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Ebook has 716 lines and 53422 words, and 15 pages
Deliciosa aranha delicada, E com pennugens d'oiro revestida: Ligeira, d?ce, setinosa e leve... Tens a pe?onha lubrica mettida, Na caricia das patas c?r de neve. .................................
Marquez das Fl?res era outro genero: confiava na mocidade viril dos seus bra?os, e nas casacas vermelhas de ca?ador com que apparecia todas as manh?s no grande pateo da casa, soado o primeiro hallali nas trompas dos monteiros. E a batalha come?ou, estando Ezequiel empenhado em fazer triumphar o marquez.
--Boa pessoa, fez machinalmente a rapariga, ? muito boa pessoa.
--Uma coisa n?o sabe a menina. Elle est? doido por si.
--Ai! o tramouco do velho...
--Diz que a ha-de fazer muito feliz.
--Brr! Pois quem somos n?s?
--Tanto que me encarregou...
--Voss? alcovita agora, Ezequiel?
--Desejaria v?l-a amparada, menina Luiza. Conheci-a pequena n'esta casa, vi-a medrar e fazer-se mulher, e gosto de si como os av?s das netinhas tagarellas. D'ahi, n?o promette grandes dilatamentos a vida da noss'ama: cedo, tarde, quando menos cuide, ahi vai ella caminho dos anjos. E fallando claro: a situa??o que ella lhe fez n'esta casa, ? uma coisa posti?a que l? f?ra a menina n?o poder? continuar sem uma protec??o. Quer que mudemos de conversa?
--Posso, Ezequiel, isso posso. N?o digo a servir, mas escolhendo rapaz com quem me case.
--Da aldeia, da quinta... Que crea??o ? a d'esses homens? Afeitos ao trabalho das terras, querem mulher da sua condi??o, que sache, que monde, que moireje, e vista d'estamenha, e tenha rijeza p'ra lhes parir um crean?o, em todas as paschoas de Deus. Al?m d'isso, duas naturezas desiguaes na educa??o--marido ciumento da mulher que n?o merece--mulher desprezando o marido que a n?o soube captivar. D'ahi zangas, ralhos, maus tratos, que sei eu? Ao passo que sendo rica, poderia encontrar um mo?o d'estima??o que lhe fizesse a vida doirada, n'uma casa cheinha como um ovo.
--Mas rica, rica... Voss? conhece a minha gente. Morrem todos de fome, l? por casa. Se me n?o comem os olhos, ? que n?o podem tirar-m'os sem que eu d? por isso. Ser rica, de que modo, por que processo? Diga.
--Eu a bem dizer, n?o tenho plano. Id?as vagas, muito d'alto, que se n?o podem assim contar a uma rapariga nova e com principios diversos dos meus. Id?as de velho que viu mundo e sabe chamar os bois pelo seu nome. Olhe. Quando eu era rapaz tive uma patr?a viuva, entradota, mais que medonha--inda esbraseada por noivar, pobre senhora!--que uma noite me beliscou o assento, de passagem por um corredor ?s escuras. Eu n?o quiz: gostava muito mais da cozinheira: opini?es de galucho, menina Luiza! Fui p'ra rua como era de justi?a. Quatro annos depois estava o cocheiro nomeado visconde do appellido da minha antiga adoradora. Perdidinha por mim, menina Luiza, perdidinha. Carago! E eu t?o bruto que n?o quiz! Se lhe ponho as cal?as em cima, andava agora de sege por essas capitaes.
--Fallando claro, o teu serm?o quer dizer: amiga-te com o senhor marquez, rapariga. N?o ? isto? Por sua morte, talvez sejas rica; em vida d'elle por for?a has-de ser feliz.
Ezequiel n?o retrucou, mas poz-se a contar historias de raptos, vergonhosos amores, coisas cynicas e patuscas, sem apparente colliga??o de sentido. A voz fizera-se-lhe surda, d'uma firmeza espa?ada que lhe espargia na face aspectos graves de pr?gador e de magistrado. E recapitulou da pr?dica, pitadeando, que a vida era um quotidiano mercado onde a gente adquiria o que por acaso tivesse de sobrecellente. Manoel Antonio Ferro, sahira da aldeia com elle, Ezequiel, em 40, com tres pintos no bolso, e o saquito da roupa branca. Entrado mar?ano n'uma loja do Porto, roubou o dono: primeira fa?anha, v? vendo... Foi ao Brasil mercandejar nos escravos, volta millionario. Chegado a Lisboa n'um estad?o de principe, recommendado at? aos olhos, nenhuma casa se abriu para o receber. Trazia na consciencia duas mortes, ao que se contava, e uns poucos de processos por contrabando e moeda falsa. O homem n?o se ralou muito co'a recep??o dos patricios. Fez tranquillamente um palacio na Junqueira, talhou jardins, comprou herdades, derribou azinheiras, plantou vinha, fez elei??es: e um bello dia, quando j? entrava a ser necessario, deu doze contos para escolas, reclamando farda de mo?o fidalgo, pelos Ferros de Santo Thyrso, que eram ladr?es d'estrada e sapateiros. Toda a gente entrou a chamar-lhe venerando, desde os doze contos. Hoje, ninguem funda um banco sem o nomear director, e n?o se inaugura uma esc?la sem elle l? ir botar discurso, com os seus ares de pai-av?. Est? par, est? conde; e se ainda n?o p?e na cabe?a a cor?a real, ? que j? tem uma de cornos, mimo da mulher, a sogra d'este Marquez das Fl?res que ahi est? de visita. A duqueza de Montes, menina Luiza, hoje velha, e t?o virtuosa senhora, que manda rosarios da Terra Santa a noss'ama... era uma dan?arina do primeiro caf?-concerto que se fundou em Lisboa, cheia de molestias. Depois da dan?a, vinha p'ras mesas embebedar-se com genebra, sentada no collo de quem lhe desse dois pintos. Eh! Eh! Tudo se vende e se compra: caras geitosas, virgindades velhas e novas, familia, patria, salva??o, condecora??es, reputa??es, sapatos d'ourello e garrafas de vinho. Quer um bom camarote no reino dos c?os, menina Luiza? D? quatro contos ao papa: manda-lhe a chave na volta do correio. Faz-se de c?res? Ora adeus! N?o digo que seja dos Evangelhos, esta doutrina. Mas ? o resumo de cincoenta annos de trambulh?es e miserias. Seja-me rica! A primeira felicidade ? ter que vender. Mas a unica, a verdadeira, ? poder comprar.
--Ezequiel, voss? tem a alma ruim.
--Por lhe confessar que s? os imbecis se portam bem? Por lhe dizer que este mundo ? dos descarados? Ai, se eu tivesse podido convencer-me d'estas coisas na sua idade! N?o traria agora sen?o a libr? de mim proprio, e o mundo havia de fazer o que me viesse ? cabe?a. Fa?a o que quizer, menina Luiza. Mas esta fabula ? clara como agua. O senhor marquez gosta de si. Qualquer dia a senhora marqueza, trrr... foi-se. Que ha de fazer a Luizinha? Estar? resolvida a dar-se por mulher ao primeiro labrego que venha? Mas creatura! Voltar para os casebres da sua madrasta, d'onde fugiu a honra com medo aos pi?lhos? Brada aos c?os! Viver pura como a luz, uma vida escura como a noite? Olha a tolice! Despir trajos de senhora, deixar este palacio e os confortos da vida farta, a que se afez desde pequena?.. Bau! Bau! n?o tem coragem. Isso sim! V?, tane as m?osinhas em trabalhos que humilham e n?o salvam da pobreza e da fome. Hum! Hum! menina Luiza. Esses olhos n?o mentem no que deixam adivinhar. Venda, venda! O senhor marquez gosta de si.
As lagrimas saltavam j? dos olhos de Luiza.
--? mais facil morrer, disse ella.
--Pois minha rica, n?o ser? rondando o Ruy noite e dia, mais de noite que de dia, que a menina ha de ir ? cova de capella e palmito. Gostar do filho, tem todos os inconvenientes de gostar do pai, menos as vantagens. Esse pequeno ? um cabe?a louca; p?de fazer apetite ao femea?o--o que n?o faz com certeza ? uma bizarria que a deixe independente a si. Porque n?o p?de! Porque n?o tem! D'ahi, tarefa inutil perseguil-o. O fedelho por ora n?o larga os amiguinhos do collegio. A menina n?o tem fortuna, parece-me ambiciosa... Venda. O seu genero est? na alta. Dezoito annos. Uma lindeza! Venda. Bocca de morango, voz de seraphim... Venda, venda. O senhor marquez gosta de si.
Era o tempo das flora??es e dos ninhos. Divinas juventudes explodiam d'amor nas seivas da terra, na luz e nos perfumes do ar. O c?o d?ce, todo o campo uma distillaria d'essencias: l? baixo, na aldeia, as romarias come?avam, e os casamentos tambem. Luiza guardava silencio, co'os olhos longe, vendo subir a manh? pelo cantar dos passaros. Comprar e vender. Vender e comprar. Uma carinha bonita, um corpinho perfeito. O senhor marquez gosta de si.--E Luiza chorou todo o santo dia.
Uma manh?, cedo ainda, Luiza ia acordar Ruy para um almo?o na horta, antes da ca?ada, quando se deteve ? porta do quarto, sentindo rir e cochichar por entre as cortinas do leito. Talvez que Palhalvo, madrugador, a tivesse antecedido. Uma avidez de saber espica?ava-a entretanto. P? ante p?, esgueirou-se por entre os batentes da porta, franzindo pouco o reposteiro, para se ir acocorar, sutilosa, por traz do grande biombo de coiro que resguardava a entrada. Era um dialogo abafado, d'um tom unido, e com palavras expirantes que ?s vezes se perdiam entre murmurios de suspiros e beijos. Luiza avan?ou trai?oeiramente a cabecita de vibora para f?ra do esconderijo. E os seus olhos estavam como uma interroga??o rancorosa, atrav?s das phantasticas elegancias d'essa camara, que nos seus mais pequenos detalhes evocava em estatua a organisa??o desconnexa, fruste, mysteriosa, desigual, que l? vivia. Bem podia a estranheza da installa??o ser tomada em amostra de faculdades singulares. D'aquellas f?rmas erraticas e symphonicas de c?res amortecidas, via Luiza exhalar-se, sob um dia novo, a alma exotica a que ellas serviam d'involucro. As paredes eram forradas de velludo sombrio, j? desbotado nos sitios do sol, e com pinturinhas vaporosas de figuras e fl?res. Sombrios tapetes, quasi uma relva, amorteciam a bulha dos passos, at? aos degraus do immenso leito toucado d'escuro, ? laia d'e?a, e com cercaduras ? moda das da arma??o mural. Uma quantidade de moveis singulares: credencias d'?bano sobre ligeiros p?s, trabalhadas como uma renda preciosa de volutas, entre ferrarias de prata batida a martello; nudezas d'estatuas aos cantos, brancas d'insomnia no rasgo genial das suas attitudes, servindo de cabide a chap?os de mil formatos: grandes jarr?es sobre cubos esculpidos, em cujas arestas noctiluziam douradas vagas de pregos: e mesas carregadas d'estatuetas, marfins, velhas miniaturas, bocetas esculptadas: espelhos de metal, tenebrosos, por cima dos canap?s, fazendo surgir da sua agua verde, esqualidos phantasmas d'enforcados: roup?es de grandes desenhos na espalda dos tamboretes: e defronte do leito, um enorme divan com os cochins em desordem, alguns atirados, e livros por cima, cujas folhas os galgos iam passando entre as patas, por distrahir-se, nos intervallos da somneca. De cada um d'esses pormenores, um bra?o sahia e apontava um capricho, escaninhos velados de religi?o instinctiva, qualquer coisa de cavalheiroso em que palpitava uma ra?a, ou se iam espregui?ando as passivas mollezas da anemia hereditaria. Lentamente, os olhos de Luiza afizeram-se a divagar por toda aquella confusa penumbra. Pela direita, acima do genuflexorio, n'uma especie de tryptico negro, havia um quadro: era estranho: duas m?os brotavam da carbonosa noite do fundo, implorativas, m?os d'asceta devorado pela tenta??o: uma cabe?a funebre movia-se nas sombras d'um capuz, insistindo em affirmar o quer que fosse d'asperrimo--se a lampada gothica de tres bicos, cahida do tecto, oscillava, no tom morti?o que as luzes t?m de dia, mesmo ?s escuras. Aquillo parecia um templo, sob a agonia terrivel da lampada. Mas j? lambendo o muro, o clar?o d'ella fazia valer tropheus d'armas, radiando d'estapafurdias panoplias: a mitra d'um bispo, cravejada de joias, um parasol de coiro arrancado ?s escava??es d'um templo romano, em Evora, peitoraes d'uma antiga cota sarracena... E dir-se-hia uma sala d'armas ent?o. Por?m do outro lado, a luz ia aclarar perto do leito, um perfumador de cobre sobre trip? de bronze. Luiza reparou. Ligeiros fumos fugiam ? tona da ca?oila, espojando ar?mas de fl?res de Takeoka, bolas de styrax, coiro da Russia, jasmins... E santo Deus! a narina farejava lupanar. De quando em quando, as cortinas do leito mexiam, e pelo ar respirado da pe?a, aquelles perfumes torpidos erravam, n'essa calentura das alcovas habitadas pela reminiscencia de muitos amores sobrepostos. Luiza sentia-se desfallecer, ? id?a d'outra mulher antes d'ella, ter captivado o estudante. Mas que mulher? dizia a camareira emparvoecida. O nome d'ella? O feitio d'ella? Dentro do palacio, por mais que procurasse, n?o descobria uma rival. Sua irm? n?o era bella: e fatigada, arrastando saias de barra immunda... Na cozinha, as creadas, todas feias de perder os sentidos. Alguma creatura de f?ra? Isso ? que n?o! De noite, Luiza rondava os corredores: a galeria que abra?ava exteriormente o quarto de Ruy, era Luiza que lhe fechava a grade de ferro, aberta sobre os jardins. E irresoluta, tinha um suor na raiz dos cabellos. Aquelle sonso! Aquelle vil!--A sua primeira gana tinha sido correr ao leito, afastar as cortinas, ir contar tudo ? senhora. Mas um terror apoder?ra-se dos seus membros. Que medonha noite na sua alma, que singular e perfida viola??o do seu destino, quando ella visse com os seus olhos, palpasse com os seus dedos, o que j? alcunhava de trai??o a uma f? que ninguem lhe havia ainda jurado! E l? dentro, n'aquelle infame ninho de volupias, sempre o murmurio de beijos e suspiros. Urgia emtanto chamal-o para o almo?o. J? no pateo havia rumores de vozes e relinchos de cavallos. Luiza sahiu p? ante p?, para entrar outra vez com grande ruido de portas atiradas. Mas ainda ella n?o transpunha a ?rea de resguardo marcada pelo biombo, Ruy sahiu do leito com impeto, muito pallido, vestido apenas d'uma camisa de s?da: e vindo a ella, volubilmente, abra?ou-a a plenos bra?os, deu-lhe um beijo furioso na bocca, e de rodilh?o p?l-a f?ra, fechando a porta sem mais explica??es. Foi n'aquelle idyllio triste a unica impress?o feliz que ella sentira: e todo o dia, toda a noite, lhe sabia a bocca ?quelle beijo de rapaz que lhe entr?ra na carne pela furia virulenta da lingua.
D'alli a pouco, os ca?adores deixavam o pateo direito ao laranjal. Luiza chegou-se ao terra?o a v?l-os partir. Era o resto. Alberto M., empurrava para a porta Marquez das Fl?res, retardado em dizer madrigaes ? camareira. Festejado Mattos ia bifurcado n'um burro, immovel como um bonzo por baixo d'um grande chap?o de esteira do Algarve, entre cabazes de provis?es. Marquez de Selmes f?ra o ultimo a transp?r a porta. Reparando em Luiza, gentilmente:
--Tira a cabe?a do sol, n?o adoe?as.
E mandou-lhe um beijo nos dedos. Ent?o ella alongou a vista para al?m dos muros do pateo, viu Ruy pelo bra?o de Mattoso, conversando a passos vagarosos.
--Menina Luiza.
Era Ezequiel com uma caixa de marroquim.
--Da parte do senhor marquez.
Luiza abriu o cofre, na ingenua expans?o de Margarida ao atacar a aria das joias, na scena do jardim.
--Joias, joias! e houve no orgulho d'ella, um romper do sol vertiginoso.
--Para come?o, ? do melhor, dizia Ezequiel. E Luiza tocava n'um bracelete ao acaso, com safiras e pequenas perolas d'agua duvidosa. Havia mais um afogador, seu par de brincos, outra pulseira... E a sua bocca sorria de pasmo, na sua cara enxovalhada de pejo.
--Vale quarenta libras, toda esta caganifancia, quarenta. O homem faz limpamente os seus negocios, dizia Ezequiel. Eh! Eh! ponha l? as pulseiras, menina Luiza:--abriu uma.--Que lindeza! Metteu-lh'a no bra?o. ? para v?r como fica.
Luiza toda se arrepiava ao frio do metal na pelle trigueira do seu punho. Lembravam-lhe aquelles beijos na camara de Ruy, pela manh?. E fechou o cofre de repente, dizendo a Ezequiel que o tornasse a levar ao marquez. Com certeza houvera engano. Ella n?o podia aceitar presentes d'aquelles.
Ent?o c'o gesto grave, Ezequiel:
--Nada, nada. Seu amo ficaria fulo, se visse as joias recambiadas.
Mas Luiza n?o o escutava, nem ouvia. De novo, o ciume lhe fizera derivar a atten??o por outra corrente.
Oh, a mulher que estava com elle! N?o poder ella agarral-a sem testemunhas! N?o lhe poder tomar o n? da goela entre os pollegares furiosos; e desagregar-lh'o, e esmagar-lh'o fazendo-lhe espalmar a lingua para f?ra da bocca, at? ? base toda sangrenta nas mordeduras da agonia! Via-o ent?o apparecer d'entre as cortinas--como elle vinha, lesto, branco, em sobresaltos!--na sua esguia camisa de s?da, vermelha e longa, muito franzida ? volta do pesco?o, e toda ella moldando a estatura elan?ada d'algum d'esses reisinhos loiros das phantasmagorias poeticas de Shakespeare. E o beijo que lhe d?ra, t?o sapido de delicias in?ditas, bocca a bocca, Luiza tinha-o sempre no fremito dos seus labios, e guardava-lhe o perfume no halito, como se o embalsam?ra uma pastilha de harem.
--Al?m de que, tenho f? que a menina vai d'aqui a pouco mudar de ten??o. Ol? se vai!
--Que est? a rosnar, Ezequiel?
--Nada, nada. Aceitar, que quer dizer? ? um presente: meu amo n?o pede nada por elle. D'ahi, seria a primeira vez... Eu c? recusei deitar-me co'a viuva, que era barbosa e medonha, mas sempre lhe fui recebendo bom relogio de oiro. Gente pobre p?e de banda orgulhos tolos. ? metter n'algibeira, menina Luiza. ? de boa crea??o.
Uma hora no relogio do corredor.
Ainda agora Luiza n?o sabe explicar, como ? que tendo jurado a si mesma, recambiaria o estojo ao marquez, se encontrou no fim do banho em frente ao espelho, n?a como Cypris na areia de Cyth?ra, ensaiando o effeito do afogador e dos braceletes, na pelle rosada ainda dos attritos da esponja. ? medida que ia fixando sobre o espelho, tantos e tantos detalhes de perder a cabe?a, passava no clar?o dos seus olhos o mudo extasi de si propria, e a corisca??o do oiro novo, nas flocosidades brunas da garganta e dos hombros. E comsigo mesmo acabou por achar raz?o a Ezequiel. Por fim de contas, aceitar que quer dizer? ? um presente. O senhor marquez n?o pede nada em demasia da offerta. Virava a cabe?a para v?r o luzeiro dos brincos, ageitava o colar, punha as pulseiras... Deliciosa, fascinadora, appetecivel! Se Ruy pudesse v?l-a a plena luz, assim despida, e sem a hypocrisia do mais ligeiro v?o, talvez que elle sustasse de vez tantas repulsas--ai, talvez!--e viesse cahir-lhe aos p?s absorvido na sua belleza immortal. Oh, como da esbelteza nervosa dos dois corpos, ventre a ventre, se evolaria o poema de mysteriosas caricias n'esse instante, rimado a beijos, labio a labio; esse divino poema, atrav?s de cujas estancias rola a batalha do gozo, e do calice de cujas imagens gotteja a tripla-essencia das mais celestes devassid?es! Duas vezes ou tres desenrol?ra a camisa, esfregando-a da gomma entre as m?os sobresaltadas: e ainda por fim se adorava no espelho adulador, furiosa por dar-se, n'um paroxismo que ia at? ao deslumbramento. De repente pareceu-lhe ouvir rumor no quarto proximo. Enfiou a camisa ? pressa, atarantada; p? ante p? foi indo de mansinho at? ? porta, receosa, d'ouvido ? escuta occultando a nudez por traz dos reposteiros. N?o se engan?ra. Estava entreaberta a porta do corredor. Ent?o lan?ou um chale pelos hombros, enfiou as chinellas ? pressa, sem se atrever a perguntar quem andava l?. Mas deu um grito de susto, vendo Ezequiel diante d'ella, l?vido de morte, tremulo e babado como um satyro decrepito.
Luiza apenas tivera tempo de acocorar-se a um canto da pe?a, buscando encobrir-se toda no chale, pallida de vergonha e gritando ao malandro que se fosse.
Por?m este, apopletico, nem fallar podia, fulminado por aquella vis?o de mulher n?a, e com o cuspo a espessar-se em grossos fios nos cantos da bocca.
--Aquelle ruivo, menina Luiza, tartamudeou elle por fim, rolando os olhos,--o que faz versos... Entregou-me este papel para vossemec?.
--Bem, bem, v?-se embora. Ande! N?o ha maior atrevimento.
--Ouve, Luizinha, rica filha, eu j? me vou. ? uma coisa que eu trago aqui guardada. Des'que te vi. E t?o n?asinha, t?o boa, Jesus do c?o!
--D'aqui p'ra f?ra! J?! Ou chamo gente.
--Os outros querem-te por uma vez, pai, filho, mo?os e velhos, anda tudo atraz de ti. ? uma canalha, j? t'o disse, ? uma canalha. At? me propuzeram que te amorda?asse, uma noite, p'ra se refocilarem comtigo, aquelles ladr?es.
A sua voz rastejava, o seu aspecto era terrivel.
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