Read Ebook: Viagens na Minha Terra (Completo) by Almeida Garrett Jo O Batista Da Silva Leit O De Almeida Garrett Visconde De
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Ebook has 1977 lines and 72445 words, and 40 pages
ngelho! Deve ser por escarneo. Se o leem, h?ode ver l? que nem a esquerda deve saber o que faz a direita...
Vamos ? descrip??o da estalagem; e acabemos com tanta digress?o.
? como eu devia fazer a descrip??o: bem o sei. Mas ha um impedimento fatal, invencivel--egual ao d'aquella famosa salva que se n?o deu... ? que nada d'isso l? havia.
E eu n?o quero calumniar a boa gente da Azambuja. Que me n?o leam os taes, porque eu heide viver e morrer na f? de Boileau:
Rien n'est beau que le vrai.
Nada, nada, verdade e mais verdade. Na estalagem da Azambuja o que havia era uma pobre velha a quem eu chamei bruxa, porque emfim que havia de eu chamar ? velha suja e maltrapida que estava ? porta d'aquella asquerosa casa?
Havia l? ?sta velha, com a sua m??a mais m??a mas n?o menos nojenta de ver que ella, e um velho meio paralytico meio demente que alli estava para um canto com todo o geito e tra?a de quem vem folgar agora na taberna porque ja bebeu o que havia de beber n'ella.
Matava-nos a s?de; mas a agua alli ? beber quartans. O vinho era atroz. Limonada? N?o ha lim?es nem assucar.--Mandou-se um proprio ? tenda no fim da villa. Vieram tres lim?es que me pareceram de uns que pendiam, quando eu vinha a f?rias, ? porta do famoso botequim de Leiria.
O assucar podia servir na ?ltima scena de M. de Pourceaugnac muito melhor que n'uma limonada. Mas misturou-se tudo com a agua das sez?es, beb?mos, pozemo-nos em marcha, e at? agora n?o nos fez mal, com ser a mais abominavel, antipathica e suja beberagem que se p?de imaginar.
Caminh?mos na mesma ordem at? chegar ao famoso pinhal da Azambuja.
Eu darei sempre o primeiro logar ? modestia entre todas as bellas qualidades.--Ainda s?bre a innocencia?--Ainda sim. A innocencia basta uma falta para a perder, da modestia so culpas graves, so crimes verdadeiros podem privar. Um accidente, um acaso podem destruir aquella, a ?sta so uma ac??o propria, determinada e voluntaria.
Bem me lembram ainda os dois versos do poeta D?mades que s?o forte argumento de auctoridade contra a minha theoria; cuidei que tinha mais infeliz memoria. Heide p?-los aqui para que n?o falte a ?sta grande obra das minhas viagens o merito da erudi??o, e lhe n?o chamem livrinho da moda: estou resolvido a fazer a minha reputa??o com este livro.
Aid ?s te kalle ka aret?s polis, Pr?to? sgathis hamartia deuteron de ais chun?.
Da belleza e virtude ? a cidadella A innocencia primeiro--e depois ella.
Mas a auctoridade responde-se com auctoridade, e a texto com texto. E eu trago aqui na algibeira o meu Addison--um dos poucos livros que n?o largo nunca--e atiro com o philosopho inglez ao philosopho grego e fico triumphante: porque Addison n?o p?e nada acima da modestia; e Addison, apezar da sua casaca de penneiros, ? muito maior philosopho do que foi D?mades com a sua tunica e o seu palio atheniense.
Eu g?sto, bem se ve, de ir ao inc?ntro das objec??es que me podem fazer; lembro-as eu mesmo paraque depois me n?o digam:--'Ah, ah! vinha a ver se pegava!'--N?o senhor, n?o ? o meu genero esse.
Ja se ve que em nada d'isto ha a minima allus?o ao feliz systema que nos rege: estou fallando de modestia, e n?s vivemos em Portugal.
Ora pois, mas a tal belleza, por certo ar ala-moda, certo n?o-sei-qu? de atrevido nos olhos, de deslavado na cara, e de descomposto nos ademanes, perde toda a gra?a e quasi a propria formosura de que a dot?ra a natureza...
V?de-me aquelles labios de carmim. Ha maio florido que tam lindo bot?o de rosa apresente ao alvorecer da madrugada?... Mas olhae agora como o riso da malicia lh'o desfolha tam feiamente n'uma desconcertada risada...
Desvaneceu-se o prestigio.
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Mas o que ter? tudo isto com a jornada da Azambuja ao Cartaxo? A mais ?ntima e verdadeira rela??o que ? possivel. ? que a pensar ou a sonhar n'estas coisas fui eu todo o caminho, at? me achar no meio do pinhal da Azambuja.
Ahi par?mos, e acordei eu.
Sou sujeito a ?stas distrac??es, a este sonhar acordado. Que lhe heide eu fazer? Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e fallo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de somnambulo, de somniloquo, de... N?o, fica melhor com seu ar de grego ; digamos somnilogo, somnigrapho...
Chega o A. ao pinhal da Azambuja, e n?o o acha. Trabalha-se por explicar este phenomeno pasmoso. Bello rasgo de stylo romantico.--Receita para fazer litteratura original com pouco trabalho.--Transi??o classica: Orpheu e o bosque do M?nalo.--Desce o A. d'estas grandes e sublimes considera??es para as realidades materiaes da vida: ? desamparado pela hospitaleira traquitana e tem de cavalgar na triste mula de arrieiro.--Admiravel choito do animal. Memorias do marquez do F. que adorava o choito.
Este ? que ? o pinhal da Azambuja?
N?o p?de ser.
?sta, aquella antiga selva, temida quasi religiosamente como um bosque druidico! E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar historia de Pedro de Mallas-artes, que logo, em imagina??o, lhe n?o pozesse a scena aqui perto!... Eu que esperava topar a cada passo com a cova do capit?o Rold?o e da dama Leonarda!... Oh! que ainda me faltava perder mais ?sta illus?o...
Sim, leitor benevolo, e por ?sta occasi?o te vou explicar como n?s hoje em dia fazemos a nossa litteratura. Ja me n?o importa guardar segredo, depois d'esta desgra?a n?o me importa ja nada. Saber?s pois, ? leitor, como n?s outros fazemos o que te fazemos ler.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas,
Um pae,
Dois ou tres filhos, de dezanove a trinta annos,
Um criado velho,
Um monstro, incarregado de fazer as maldades,
Varios tractantes, e algumas pessoas capazes para intermedios.
E aqui est? o precioso trabalho que eu agora perdi!
Isto n?o p?de ser! Uns poucos de pinheiros raros e infezados atravez dos quaes se est?o quasi vendo as vinhas e olivedos circumstantes!.. ? o desapontamento mais chapado e solemne que nunca tive na minha vida--uma verdadeira logra??o em boa e antiga phrase portugueza.
E comtudo aqui ? que devia ser, aqui ? que ?, geographica e topographicamente fallando, o bem conhecido e confrontado sitio do pinhal da Azambuja...
Passaria por aqui algum Orpheu que, pelos magicos pod?res da sua lyra, levasse atraz de si as ?rvores d'este antigo e classico Menalo dos salteadores lusitanos?
Eu n?o sou muito difficil em admittir prodigios quando n?o sei explicar os phenomenos por outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se. Qual, de entre tantos Orpheus que a gente por ahi ve e ouve, foi o que obrou a maravilha, isso ? mais difficil de dizer. Elles s?o tantos, e cantam todos t?o bem! Quem sabe? Juntar-se-hiam, fariam uma companhia por ac??es, e negociariam um emprestimo harmonico com que facilmente se obraria ent?o o milagre. ? como hoje se faz tudo; ? como se passou o thesoiro para o banco, o banco para as companhias de confian?a... porque se n?o faria o mesmo com o pinhal da Azambuja?
Mas aonde est? elle ent?o? faz favor de me dizer...
Ao ch?o estive eu para me atirar, como crian?a amuada, quando vi voltar para a Azambuja o nosso commodo vehiculo, e deante de mim a infezada mulinha asneira que--ai triste!--tinha de ser o meu transporte d'alli at? Santarem.
Tinha a bossa, a paix?o, a mania, a furia de choitar aquelle notavel fidalgo--o ?ltimo fidalgo homem de lettras que deu ?sta terra. Mas adorava o choito o nobre marquez. Conheci-o em Par?s nos ultimos tempos da sua vida, ja octogenario ou perto d'isso: deixava a sua carruagem ingleza toda mollas e confortos para ir passear n'um certo cabriolet de pra?a que elle tinha marcado pelo s?cco e duro movimento vertical com que sacudia a gente. Obrigou-me um dia a experimenta-lo: era admiravel. Communicava-se da velha horsa normanda aos varaes, e dos varaes ? concha do carro, tam inteiro e tam sem diminui??o, o choito do execravel Babi?ca! Nunca vi coisa assim. O marquez achava-lhe propriedades toni-purgativos, eu classifiquei-o de violentissimo drastico.
Foi um dos homens mais extraordinarios e o portuguez mais notavel que tenho conhecido, aquelle fidalgo.
Era feio como o peccado, elegante como um bugio, e as mulheres adoravam-n'o. Filho segundo, vivia de seus ordenados nas miss?es por que sempre andou, tractava-se grandiosamente, e legou valores consideraveis por sua morte. Imprimia uma obra sua, mandava tirar um unico exemplar, guardava-o e desmanchava as f?rmas....--N?o acabo se com??o a contar historias do marquez do F.
Piquemos para o Cartaxo, que s?o horas.
O falso deus adora o verdadeiro!
Mas essas cren?as s?o para os que se fizeram grandes com ellas. A um pobre homem o que lhe fica para crer? Eu, apezar dos criticos, ainda creio no nosso Cam?es: sempre cri.
Mas at? morrer aprender, diz o adagio: e assim ?. E tambem ? aphorismo de moral, applicavel outrosim a coisas litterarias: que para a gente achar a desculpa aos defeitos alheios, ? considerar--? p?r-se uma pessoa nas mesmas circumstancias, ver-se involvido nas mesmas difficuldades.
E aqui direi eu com o vate Elmano:
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