Read Ebook: Luiz de Camões: notas biograficas Prefacio da setima edição do Camões de Garrett by Castelo Branco Camilo
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Ebook has 75 lines and 11262 words, and 2 pages
Accusado e chamado a G?a, sob pris?o, pelo governador Francisco Barreto, antes de fechado o triennio da sua provis?o, naufragou e perdeu os haveres proprios e os alheios de que lhe pediam conta. Recolhido ? cad?a, instaurou-se-lhe processo para o capitularem e remetterem ao reino. Raramente, por?m, os capitulados por culpa d'essa especie vinham ao reino.
Cam?es estava preso quando cessou o governo de Barreto. D. Constantino de Bragan?a deu-lhe liberdade, quer movido por compaix?o do poeta, quer por induc??es de sua innocencia. Livre d'este perigo, Luiz de Cam?es voltou ? vida dos amores e das suciatas. Um dia, banqueteava os seus amigos: a primeira cortina do jantar, espiritualmente succulenta, eram trovas. Fez poesias elegiacas ? incognita Dinamene, uma quem quer que fosse que morreu afogada.
N'esta d?r, por?m, deve descontar-se o que vai de artificio no rhythmo, e de engenho calculado:
Cantou a baiadera Luiza Barbora, captivo,
Sempre amores.
Diz elle sinceramente:
Cam?es n?o regressaria pobre, empenhado, vivendo do bem-fazer dos passageiros, se o vice-rei o provesse na vaga d'uma feitoria que avultava ao rendimento de 500 pard?os, com rendimentos e cargos annexos licitamente percebidos. Esse provimento lhe bastaria como hypotheca a adiantamentos e independencia relativa. A mim me quer parecer que a feitoria de Chaul lhe foi dada por provis?o real depois da publica??o dos LUSIADAS, ao mesmo tempo que se lhe deu a ten?a, sob condi??o de residir na c?rte. A condi??o de residencia seria inexplicavel d'outro modo. Logo que a feitoria vagasse, cessaria a ten?a. A condi??o inhibia-o de auferir a ten?a desde que exercesse o officio.
A ten?a dos 15[CO]0 reis, o apregoado escandalo da sovinaria dos ministros, n?o era, ?quelle tempo, a miseria que se nos c? figura. Vejamos e comparemos os ordenados d'aquella ?poca. O ordenado dos desembargadores do cardeal infante eram 30[CO]0 reis, do copeiro-m?r 6[CO]0 reis, do vedor das obras 4[CO]0 reis, do guarda-m?r 13[CO]0 reis, e do veador da fazenda 30[CO]0 reis. As ten?as de 30[CO]0 reis eram apanagio de homens de muitos servi?os.
Na conta de receita e despeza de 1557 v?-se que o regedor da justi?a, 45 desembargadores, e os do pa?o que n?o eram poucos, e os da fazenda que eram muitos, todos juntos, receberam dos seus ordenados 3:7770 reis. O governador da casa do civel, 24 desembargadores, 6 alcaides, 100 empregados e outros officiaes de justi?a, todos juntos, receberam dos seus ordenados 1:6640 reis. Trinta annos depois, o numerario n?o estava mais barato, e os reis de ten?a de Cam?es haviam de parecer um excesso, um esbanjamento da fazenda nacional a qualquer d'aquelles desembargadores. Diogo Botelho, t?o celebrado em Africa e Asia, recebia 12[CO]0 reis de ten?a. Luiz de Cam?es n?o se julgaria desdourado com os 15[CO]0 reis, nem essas hypotheses de fomes, frios e mendicidades que se encarecem deve aceital-as a critica desligada de velhos preconceitos.
Eu creio tanto na mendicidade de Homero como nos pedit?rios nocturnos de esmola do Antonio de Java para sustentar Cam?es. Se o poeta chegasse ao extremo da penuria, acharia no refeitorio dos seus bons amigos dominicanos com quem tratava frequentemente a farta mesa que alli encontravam somenos benemeritos. N?o me soffre o conceito que f?rmo d'esse egregio espirito que elle quizesse a vida sustentada com t?o desprimorosos expedientes. ? a lenda da miseria em que se comprazem as imagina??es sombrias. Porque elle pediu em verso uma camisa em G?a, decidiram que o poeta n?o tinha camisa. Parece ignorarem que a dadiva d'uma camisa como ellas por esse tempo se presenteavam era um objecto caro e luxuoso. A fabula tecida sobre a fome de Cam?es originou-se talvez d'alguns poetas subalternos que entenderam desfor?ar-se da sua pobreza affrontando a na??o que vira finar-se no desconforto o principe dos poetas da Hespanha. Consolavam-se assim com a camaradagem e vociferavam contra a ingratid?o dos parvos. Espanta, por?m, que se n?o clamasse com mais justi?a contra os aulicos que deixaram morrer no hospital Antonio Galv?o, o apostolo das Molucas, e Duarte Pacheco Pereira.
N?o se p?de ajuizar que os proventos do poema impresso lhe auxiliassem a vida. Os LUSIADAS talvez lhe n?o surtissem o equivalente da ten?a nos oito annos da sua maior popularidade. Devia ser vagarosa a extrac??o da obra, attentas as calamidades d'aquelles annos--pestes, amea?as de guerra, pobreza do estado, corrup??o de costumes, desaven?as no pa?o, a preponderancia dos livros mysticos e o descahimento das letras profanas. A segunda edi??o do poema, no mesmo anno de 1572, em vista dos argumentos plausiveis do academico Trigoso, n?o ? aceitavel nem sequer verosimil. Falsificaram retrospectivamente a data porque havia raz?o para recear que uma censura mais severa prohibisse nova edi??o sem os c?rtes das estancias que desagradaram ? clerezia e ? pudicicia d'uns velhos que poderiam, na verdura dos annos, ter assistido sem pejo ?s chocarrices obscenas de Gil Vicente. N?o se p?de calcular quantos annos intercorreram da primeira ? segunda edi??o; ?, todavia, provavel que a segunda se fizesse em vida do poeta.
J? por ordem do c?o, que o consentiu, Tendes o bra?o seu, reliquia cara, Defensor contra o gladio que feriu O povo que David contar mand?ra, No qual, pois tudo em v?s se permittiu, Presagio temos, e esperan?a clara, Que sereis bra?o forte e soberano Contra o soberbo gladio Mauritano.
.................................... Que as vossas settas s?o na justa guerra Agudas, e entrar?o por derradeiro Nos peitos que inimigos s?o do Rei.
Est? revendo a incitadora carta um cora??o que ainda vibra hostil como outr'ora o bra?o valoroso do mancebo que se estre?ra em Ceuta, N?o se condemne Luiz de Cam?es por esse enthusiasmo; mas reservemos os louvores da prudencia discreta e previdente para o bispo Jeronymo Osorio e Martim Gon?alves da Camara. Se pretendem illibar Cam?es da nodoa quasi commum dos fidalgos--para que nos dizem que o alquebrado poeta escreveu bastantes estancias cantando, por hypothese, o regresso triumphal do coroado imperador de Marrocos? Essa mal estreada epop?a condiz ? indole bellicosa de Cam?es--foi a ultima e mallograda explos?o do seu patriotismo; todavia, ? uma prova negativa do seu juizo politico. Emfim, sempre poeta e sublime poeta do amor e das batalhas, foi astro que refulgiu at? ao occaso, apesar dos annos aggravados de doen?a, de necessidades supportadas com a impaciencia da velhice, e um pouco do fel do ciume d'outros poetas eleitos para cantarem a Iliada africana.
Se Luiz de Cam?es, em pureza de costumes, condissesse com a sobr'excellencia do engenho, seria exemplar unico de talento irmanado com o juizo. N?o se conciliam as regras austeras da vida serena e pautada com as convuls?es da phantasia. Amores d'alto enlevo e de baixa est?fa, o ideal de Catharina de Athaide e as carnalidades das malabares e baiaderas levantinas--o exal?ar-se a regi?es de luz divina e o cahir nos tremedaes do vulgo--essas vicissitudes que a si mesmo fazem o homem assombroso em sua magestade e miseria, tudo isso foi Cam?es, e em tudo isso foi semelhante aos genios eminentissimos; mas nenhum homem como elle p?de redimir-se de suas fragilidades, divinisando os erros da imprudencia, fazendo-se amar nos extravios, e immortalisando-se em um livro que, ao fechar de tres seculos, alvoro?a uma na??o. ? de n?s todos esse thesouro legado por um homem que no dia 10 de junho de 1580 expirava na obscuridade. Elle teve de esmola a mortalha. Permitta a Providencia das na??es que os LUSIADAS n?o sejam a esplendida mortalha que Luiz de Cam?es deixou a Portugal.
Por compra feita ao livreiro snr. Rodrigues, da travessa de S. Nicolau, em 1871.
OBRAS DE LUIZ DE CAM?ES, edi?. Jur., tom. I, pag. 166.
LENDAS de Gaspar Corr?a, tom. I, pag. 560 e 561.
TOMBO DO ESTADO DA INDIA, por Sim?o Botelho. .
MEMORIAS D'UM SOLDADO DA INDIA, compiladas por A. de S. Costa Lobo. Lisboa 1877.
Vida de Cam?es.
CARTA DE SIM?O BOTELHO, pag. 32. .
Edi?. Jur., tom. I, pag. 70 e 83.
HISTORIA E MEMORIAS DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS.
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