Read Ebook: O Olho de Vidro by Castelo Branco Camilo
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Ebook has 955 lines and 48910 words, and 20 pages
Quando dei tento de mim, e cobrei conhecimento da minha situa??o, tinha, nos bra?os a filha de Fern?o Cabral, e ? beira d'ella vi uma criada sua, que nos f?ra medianeira, e um criado da casa de meu pae.
Contou Maria, a intercadencias anciadas, que fugira de Bragan?a, logo que o pae se ausentou por alguns dias, no proposito de negociar o casamento d'ella com um fidalgo de Vizeu. Como n?o tinha m?e, e costumava passar muitas horas reclusa no seu quarto, os domesticos n?o deram logo conta da fuga, nem a suspeitariam t?o cedo, se a sua aia n?o faltasse tambem. Fugiu caminho da Guarda, e procurou-me alta noite, em casa de meus paes, que tentaram restituil-a ? casa paterna, temerosos dos resultados. Como ella, por?m, os assustasse ainda mais com o proposito de se matar, encaminharam-na ao meu deserto, com todo o segredo.
Imagina tu que hospedagem daria eu ? filha do gentil-homem, alli, n'aquellas ruinas, onde todas as alfaias eram um catre de bancos, uma arca, dois tamboretes de p?o, e alguma loi?a vermelha do uso dos caseiros, pobre gente de nossa ra?a, que para alli fic?ra grangeando e usofruindo as pouquinhas e inferteis terras!... A Maria e ? sua criada grave dei o meu leito; e com o meu criado me fui ao palheiro, e me agazalhei nas mantas que os caseiros nos emprestaram.
De madrugada, chegou meu pae a indagar do meu destino, e a dar-me alguns recursos para fugirmos at? onde passassemos insuspeitos. O velho chorava, e eu, digo-t'o com pejo, queria que elle se alegrasse de me ver feliz!
Deferi a minha saida para o dia seguinte, sem saber que rumo tomasse. Meu pae mandava-me fugir por Hespanha e embarcar para Hollanda. Maria, esperan?ada na commisera??o do pae e na protec??o dos seus santos advogados, queria que eu e ella fossemos ajoelhar aos p?s d'elle. Por mais que m'o dissesse em tom de anjo quando revela os decretos do c?o, n?o pude sequer imaginar possivel o perd?o do soberbo fidalgo.
Saimos para Celorico, a quatro leguas de distancia. N'uma aldeia dos arrabaldes, moravam irm?os do meu caseiro, grangeando um casal. Alli deliberei repousar alguns dias, porque Maria j? t?o sem for?as ia da jornada por serras n'um dia de rigoroso inverno, que mal podia ter-se nas andilhas. Desde aqui avisei meu pae, pedindo-lhe novas do que soubesse. Respondeu-me que, horas antes, tinha sido cercada nossa casa, e que elle, com todos os nossos, estavam arriscados a ser presos.
E foram, no dia seguinte, presos e fechados em masmorras.
As immediatas noticias que tive foram cruelissimas. Todos os nossos bens tinham sido inventariados como para entrarem no sequestro feito a bens de judeus. Eu n?o devia j? esperar recursos alguns de minha casa, e o dinheiro que eu possuia pouquissimo era para me transportar para f?ra do reino. Sobrep?e tu, Francisco, a estes lances, o medo da pris?o, e escutar a cada instante nos menores rumores o estrepito dos quadrilheiros! E, se estes s?o poucos supplicios para conceberes muito em sombra a minha vida, ajunta a isto uma cama de enxerga n'um quarto de vigamento por onde a ventania esfuziava, e sobre essa enxerga a pobre menina a tremer os frios das ses?es, e eu de m?os postas a contemplal-a assim!
Para que ninguem da aldeia nos visse, os dias para n?s eram a continua??o das noites. Aquelles pobrinhos fazendeiros, de portas a dentro, melhoraram quanto poderam a nossa situa??o. Eu, por minhas m?os, carpintijei o tabique para aconchegar o nosso quarto; e, com todas as cautellas, consegui que viessem de longe bragaes e roupas com que tirei ? alcova de Maria as tristezas da indigencia. Melhorou a minha pobre amiga e desenvolveu espantosa energia na lucta. O sorriso d'ella dava-me alentos; mas n?o podia espancar da minha alma a imagem de meu pae, m?e e irm?os encarcerados, perseguidos pelo rancor vingativo de Fern?o Cabral, e mais que muito sujeitos ? extremidade de pagarem com a vida o meu delicto.
Com que tra?as e trabalhos eu conseguia incertas noticias d'elles! Para mim era j? consolativa a nova de que os n?o tinham mandado para os carceres da inquisi??o de Coimbra. Logo que elles aqui entrassem, perdidos os considerava eu.
E assim v?o decorridos treze mezes, Francisco Luiz! Comprehendes tu que infernos eu tenho apagado com as minhas lagrimas para poder viver ainda!... Lagrimas escondidas d'aquella martyr, para que ella, conhecedora do meu desalento, n?o desanime!...
--E choras assim, Antonio! Coragem!--exclamou Abreu, tomando contra o seio o anciadissimo mo?o.
--Ai! deixa-me chorar, que n?o o pude ainda fazer tanto ?s largas. Deixa-me chorar, que isto ? veneno mortal que me s?e aos olhos! ? preciso que vejamos alma compadecida para sabermos a do?ura d'este desafogo das lagrimas!
Passados momentos, Antonio apertou, de golpe e convulsamente, as m?os do condiscipulo, levou-as aos labios, e exclamou solu?ante:
--Sabes ao que vim?
--Diz, meu querido amigo.
--Venho pedir-te dinheiro para fugir de Portugal.
--Tel-o-has. Minha m?e j? n?o vive, e eu tenho uma legitima. Conta com ella.
--Bem hajas! bem hajas, meu Francisco! Mas venho pedir-te mais alguma coisa.
--Diz.
--Eu tenho um filho de quinze dias. N?o posso fugir com a creancinha. Aceitas-m'a no rega?o da tua caridade? Ficas com o meu filhinho, para m'o restituir, quando a felicidade me bafejar?
--Ficarei como teu filhinho, Antonio. Dar-lhe-hei o cora??o que te dou a ti. Se Deus o n?o tiver levado, quando voltares, achal-o-has. N?o lhe direi o teu nome de pae, sem que tu lh'o possas dar. Ninguem saber? que ? teu filho, sem que tu possas dizel-o ao mundo.
--? assim que t'o roga a minha alma attribulada... a ti e a Deus, que me est? fallando no teu cora??o. Porque n?o hei de eu ajoelhar a teus p?s, se creio que em ti est? o Senhor da compaix?o e da misericordia?!
Francisco Luiz de Abreu levantou nos bra?os o arquejante mo?o; e, n?o menos commovido, ratificou as promessas feitas.
?s dez horas da noite seguinte, Francisco Luiz e o seu amigo sairam de Coimbra, cada qual por diversa porta. O bemfeitor foi para Ourem, sua terra; o judeu da Guarda, por desvios escusos, entrou, decorridas duas noites de jornada, na abegoaria onde o esperava a m?e da creancinha, que bebia um leite aguado de lagrimas.
Dez dias volvidos, por noite alta, entrava no mesmo casalejo Francisco Luiz de Abreu, com uma ama de leite, e com a sua legitima materna n'um saco de moedas de ouro.
Contemplou a formosura da peccadora, e a formosura do innocente nos bra?os d'ella. Saudou-os, chorando, e tomou a creancinha muito aconchegada do seio.
--Como se chama o anjinho?--perguntou o academico.
--Tu o dir?s--respondeu Antonio.--? teu afilhado.
--Seja Francisco--disse a m?e.
--Muito desejaria eu baptisal-o, e dar-lhe o meu nome--observou o academico;--mas tu sabes, Antonio, o resguardo que conv?m ter comvosco, com este menino e comigo. O meu parecer ? que se esconda quanto ser possa a influencia que eu hei de ter na crea??o de teu filho. Melhor ? que as suspeitas do mundo, se ellas vingarem descobrir liga??es d'esta crean?a comigo, me julguem a mim, que n?o a ti, pae d'ella. O meu intento ? alugar uma casinha em Coimbra onde a ama viva com elle. N?o irei ser padrinho, para n?o dar corte ? desconfian?a de que elle seja meu filho. Assim se ir? creando, at? que eu conclua a formatura. N'este meio tempo, querer? Deus que tu voltes a Portugal.
--Voltarei eu?!--exclamou Antonio, apertando no mesmo bra?o o amigo, o filho, e a m?e, que estava lavando com lagrimas o rosto da creancinha, deitada nos bra?os do estudante.--Ver-vos-hei eu mais?--balbuciou, intallado de gemidos. Que futuros melhores posso esperar eu!? Como cr?s tu possivel o termo da persegui??o?...
--N?o sei--disse Abreu, fingindo esperan?as.--N?o sei... mas as voltas do mundo s?o t?o espantosas... Todavia...--continuou elle com o alvoro?o de uma j? sincera esperan?a--n?o te lembraste ainda d'uma felicidade muitissimo possivel?
--Qual?--conclamaram os dois, para quem um raio de esperan?a era j? cousa de estontear como a luz do sol aos exhumados das trevas de longo encarceramento.--Qual? que felicidade nos promettes, meu amigo?
--A mais obvia e facil. O que me espanta ? que ella vos n?o haja sorrido primeiro do que a mim. Ides para Hespanha, n?o ? assim?
--Vamos.
--De l? passaes a Hollanda, onde achareis o abrigo que os nossos irm?os deparam a quantos infelizes v?o de c? acossados pelas tochas do auto da f?. Tu, Antonio, ?s novo e robusto. Se n?o quizeres continuar os teus estudos medicos l? fora, voltas a tua actividade para outra ordem de trabalhos: fazes-te mercador, ganhas dinheiro, esqueces a patria, como se nunca a tivesses, como em verdade n?o temos; depois, mandas ir o teu filhinho, como complemento da tua felicidade na vida tranquilla.
--Que sonho!--clamou alegremente a filha de Fern?o Cabral.--E eu nunca pens?ra n'isso...
--Nem eu...--ajuntou Antonio.--Ha umas desgra?as que esterilisam a mais pensadora e expeditiva alma! Eu n?o via sen?o escuridade... Agora, bem hajas tu, meu irm?o, que me restitues ? serenidade de homem inquebrantavel por affrontas da sorte... E a ti, a ti, meu amigo? N?o hei de eu mais v?r-te?
--Porque n?o, se eu hei de ser propriamente quem te v? levar o filho?
--Oh! ent?o j? sei que ha o antever da perfeita felicidade, c? mesmo d'este grande abysmo em que me lancei com esta infeliz menina...
E, abra?ando-se n'ella, choravam ambos lagrimas j? de jubilo, como as de quantos naufragos que apegam sobre ponta de rocha, ainda quando ao despegarem-se, para ganhar terra, voragens novas se lhes anteponham.
N'este dia, como se a adversidade can?asse de cruciar os dois fugitivos, boa nova lhes chegou a sobredoirar os prazeres da esperan?a.
Sem embargo da raivosa persegui??o do fidalgo de Bragan?a ? inculpada familia do hebreu, as leis n?o se dobraram a sentenciar a perdi??o dos innocentes. Apoz dez mezes de masmorra na cidade da Guarda, os dois velhos e seus filhos sairam livres, sob a bandeira misericordiosa dos dignitarios da S?, conjurados todos em deporem sobre a pura christandade dos presos, e sua irresponsabilidade nas desordens do m?o membro de sua familia.
Redobrada a exulta??o de Antonio com esta nova, queria j? elle dispensar-se de receber o emprestimo de Francisco de Abreu, como quem contava com sobejo dinheiro de sua casa resgatada do sequestro. O amigo, por?m, n?o condescendeu nem o desquitou da obriga??o de devedor, instando na immediata saida de Portugal, porque a raiva do fidalgo redobraria de vigilancia, depois da soltura dos presos em quem n?o pod?ra assentar em cheio a m?o rancorosa.
Prevaleceram as judiciosas previs?es de Francisco Luiz. ?quella hora, de feito, j? Fern?o Cabral, esporeado pelo odio, apertava novas diligencias para descobrir o rasto dos fugitivos, e, mediante disfar?ados espias que na Guarda lh'os andavam furoando, n?o estava j? longe de lhes descobrir o rasto.
Ao outro dia, depois de muito chorar da m?e, a cujo seio arrancaram a creancinha, Francisco Luiz, sem saber como se estancavam lagrimas de t?o puro sangue de alma, fugiu para assim dizer com o menino, sem esperar as ultimas despedidas.
Ao anoitecer d'este dia, os consternados paes, por serranias n?o trilhadas endireitaram ?s fronteiras e vingaram entrar em Hespanha. Contemplavam-se a espa?os, e viam nos olhos um do outro o desconforto, a desesperan?a, o convencimento de que sua desgra?a ia crescendo.
--E o nosso filhinho?...--dizia ella em gemidos, que pareciam um arrancar da vida.
E elle cobria o rosto com as m?os, arquejava, engulia as lagrimas e n?o respondia.
--Que mal fizemos em deixar a creancinha!--voltava ella, cruzando os bra?os sobre os seios, que lhe doiam entumecidos do leite.--Que ruim m?e eu fui!... Meu Deus, perdoae-me que eu s?mente agora considero a grandeza do meu crime!
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