Read Ebook: Infelizes: Historias Vividas by Os Rio Ana De Castro
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Ebook has 391 lines and 20635 words, and 8 pages
INFELIZES
INFELIZES
LISBOA
Empreza Litteraria Lisbonense
Libanio & Cunha
?quelles que no mundo estimo
Como n'essa noite uma febre intensa me tomasse, uma grande saudade, uma grande piedade, me invadiu o espirito, por todos os tristes, por todos os humildes--os infelizes da terra...
No principio da doen?a, quando o corpo come?a de sentir o embate grosseiro do mal, que o vencer?; quando o frio nos arrepia a carne, n'um estremecer sangrento, n'um espica?ar de venenosas agulhas; vem-nos um profundo egoismo, um completo esquecimento dos outros. Na contempla??o das nossas d?res, tudo mais desapparece sem nenhum valor.
Depois, a intensidade da febre espiritualisa-nos, a alma desliga-se do corpo extenuado e s?be a mais alto. O proprio soffrimento se desdobra n'uma vaga e serena piedade por tudo o que existe, por todos os que choram...
Ent?o, n'uma d'essas horas de sonho e de nitidas recorda??es, eu lembrei pobres almas inferiores, tristes desvairamentos em grandes espiritos, m?guas inconfessadas--que a minha alma conheceu ou presente nos humildes, nos desprezados...
D'alguns me lembrei fallar; outros ficaram na piedosa tristeza da minha memoria--n?o porque as suas lagrimas me pare?am menos dignas de serem recolhidas, n?o porque sejam menos estimados, mas porque quasi nada poderia interessar aos outros a repeti??o d'essas singelas historias de vidas simples, monotonamente eguaes pelo soffrimento.
Phantasmas sympathicos ao meu espirito, elles vieram todos rodear o leito, onde, febril, o meu corpo fatigado cahia.
A minha cabe?a dorida abysmava-se n'um confuso recordar de cousas passadas.
E elles vieram, um a um, mostrar as suas pobres figuras empallidecidas pela distancia ou pela morte, n'um desejo de serem evocados...
Setubal, maio de 96.
DEZOITO ANNOS
DEZOITO ANNOS
A tia Clara, essa adoravel velhinha que fez ha dias cento e quatro annos, teve tambem os seus dezoito--e por signal encantadores de frescura e gra?a.
Mal podemos cr?r isto, n?s que a vemos hoje t?o serena, t?o identificada com a nossa vida, t?o egual a n?s pela lucidez do espirito, sempre d'uma intelligencia e d'um interesse perfeitamente juvenil.
Eu adoro essa querida velhinha que n?o se envolveu nas recorda??es e remordimentos egoistas como n'uma antipathica coura?a eri?ada d'espinhos.
N?o! Ella recorda todo o passado, mas suavemente, sem compara??es desfavoraveis para n?s, como os velhos impertinentes costumam!... Relembra, levemente melancolica, os tempos longinquos da mocidade, t?o distante aos nossos olhos, t?o vivos ainda na sua memoria.
Ah! Eu n?o me esque?o, minha boa amiga, da saudade reconhecida que me ficou na alma quando, a ultima vez que a visitei, a vi affastar-se lentamente na meia obscuridade do longo corredor. Seguia-a um ligeiro esvoa?ar de recorda??es, toadas simples vindas de muito longe--os francezes, guerras, mortes, nascimentos, toda a sua vida singela passada na hereditaria quinta perdida entre serras, onde os echos do mundo devem ter chegado sempre esbatidos em meias tintas pallidas.
Tenho ainda no meu ouvido o som inolvidavel da sua v?zinha quebrada dizendo serena e sorridente: <
Mas a desvairada fuga aos francezes ? que eu, mais do que tudo, gosto de lhe ouvir contar.
--Era uma tarde de fins de setembro, luminosa, quente ainda. O c?o, todo em fogo no poente, flammejava n'um incendio colossal--toda a alma da Patria agonisante levantando para Deus a ultima esperan?a, no ultimo clar?o de tiros ao longe.
O povo ignorante e bom voltava para o c?o os punhos cerrados n'uma desesperada amea?a. Abandonado por todos na sua patria invadida, agarrava-se ? terra como ? sua unica defeza, o seu unico am?r, a unica raz?o d'existir.
As m?es uivavam de d?r pelos caminhos, torciam os bra?os convulsos vendo do alto dos montes os filhos que partiam para a guerra. Outras estarreciam-se n'um silencio medroso...
Toda a alma portugueza fremia n'um anseio de liberdade.
Os reis fugiam despresivelmente covardes; os ricos ainda por vezes abriam os seus palacios em festa ao passeio triumphal dos invasores; s? no povo era sem treguas o odio. Elle saberia resistir ou morrer! Miseravel povo que sacudiu n'um impeto de revolta olympica o jugo dos invasores e acurvou a cabe?a humilde ?s exigencias dos alliados! Desgra?ada gente que n?o teve a hombridade de receber na ponta das suas baionetas ensanguentadas pelos inimigos os reis que o tinham abandonado nas horas m?s! Ingenuo povo que todos v?o acordar em sobresalto quando o perigo bate ? porta e de que todos se riem depois, quando n?o ? j? precisa a for?a do seu bra?o nem a furia da sua coragem!...
Tambem a Fornos de Maceira D?o, a esse cantinho da Beira que parecia dever estar esquecido, guardado pelos matagaes e serranias bravas, chegou o desvariado clam?r, o tremendo grito:
Ella era a mais nova das irm?s; fina, graciosa, d'uma pallidez de reclusa, uma grande curiosidade perfulgindo nos seus olhos castanhos.
Ao saber a noticia o cora??o pulsou-lhe commovido n'uma inconfessada alegria... Qual de n?s aos dez?ito annos n?o comprehender? essa alegria? N?o ter sahido nunca do seu vetusto solar--salas e salas, quartos incontaveis, corredores t?o compridos que ? impossivel conhecer quem vem ao fundo!... Os santos da capella doirados e ridentes seriam os seus mais queridos companheiros, aquelles que melhor comprehenderiam a sua alma inquieta, sedenta de novo!... Se ella n?o havia d'estar alegre, no fundo, bem no fundo do seu cora??o, por essa fuga decidida que a ia tirar por algum tempo da monotona vida de todos os dias?!...
Era triste a existencia da Clarinha, passada na miseravel aldeia de casebres colmados, que rodeiam a quinta dos fidalgos como outr'ora as choupanas dos servos se encostavam medrosas ?s fortifica??es dos castellos feudaes. As irm?s, casadas; os irm?os, passando a vida dos fidalgos d'aquelle tempo, ca?avam, namoravam as primas de vinte leguas em redor, estafavam cavallos e corriam as feiras.
De quando em quando, pelas festas do anno, cortavam o fastidioso correr da vida cavalgadas que chegavam ao pateo, primos e primas que se apeavam contentes abra?ando a Clarinha, que alvora?ada os vinha esperar ? porta. Ent?o, dan?ava-se, passeava-se e, mais do que tudo, comiam-se jantares phenomenaes e ceias lucullianas.
J? ent?o, como agora, como ser? d'aqui a muitos annos, a imagem do Christo era ingenuamente feita d'uma fealdade que espanta, escondendo-se no seu nicho branco, erguendo na tristeza da paysagem os bra?os misericordiosos de Deus moribundo perdoando sempre ? humanidade que chora.
Como agora tambem, a Clarinha ouvia pela quebrada das serras os carros chiando carregados com as dornas para os lagares... Os bois olhavam'na pensativos, sacudindo as cabe?as phylosophicamente, fazendo retinir as campainhas das colleiras de coiro que lhes cingem os cacha?os robustos... Primitiva e sempre egual a vida passada n'aquelle recanto de natureza agreste.
Que admira pois que a Clarinha ficasse intimamente alegre quando o medo aos francezes a atirou para longe--como um passarito engaiolado a quem de subito abrissem as portas do carcere e visse diante de si o luminoso espa?o onde ? vontade poderia bater as azas!?...
N'essa tarde luminosa de fins de setembro os cavallos esperavam no pateo desde muito e s? a Clarinha, impaciente, estava montada. Toda a familia partia: quarenta pessoas, entre velhos, mulheres, crian?as e criados--que eram, patriarchalmente, uma continua??o menor da familia. Os homens v?lidos, os rapazes, esses l? andavam pela guerra, e bastante invejados pela Clarinha!.. Os velhos despediam-se chorosos. Arrancavam-se d'alli como quem tirasse d'um peito ainda vivo um cora??o sangrento. Fugia-lhes a vida em gemidos. Os cedros da quinta tinham para elles a maguada significa??o dos cyprestes da igreja, onde toda a sua familia, desde seculos, ia dormir descan?adamente; mais felizes eram esses...
Pela madrugada chegaram a Vizeu. Deserta a pequena cidade, de sombrias e tortuosas ruas. Os cavallos batiam rijamente nas cal?adas, pondo em sobresalto os pacificos habitantes. Abriam-se janellas a medo e caras enfiadas de susto espreitavam inquerindo: seriam os francezes?!...--N?o, n?o eram ainda, mas gente que fugia d'elles!...--Ent?o sempre era certo; vinham, vinham!...--E as janellas fechavam-se rapidamente como se quizessem espancar assim a vis?o dos francezes, monstros de pezadello!
E esse grito de pav?r perseguia-os sempre, como dobre a finados para os velhos e medo para as criancitas--que imaginavam o pap?o formidavel e negro levando os meninos nas garras aduncas!.. S? as mulheres, com o espirito mais vivo, mais aventuroso, come?avam a achar deliciosa aquella correria louca diante do desconhecido. Para a Clarinha era sempre a mesma ideia:--elles seriam alguma coisa de vivo e espirituoso e brilhante, que ella n?o conhecia, mas que a n?o assustava!...
A noite cahia muito fria, d'esse frio secco e cortante da serra. As estrellas brilhavam mais do que nunca, com um nervoso piscar d'olhos bonitos... Ella olhava-as, sonhando acordada!--Via um cavalleiro vestido d'oiro que levava pela estrada da via lactea todo um povo conquistador e bello... E uma aguia enorme, com azas feitas de soes, cobria o mundo n'uma efabula??o de luz!...
Bem certo ? que as grandes dores se fazem pequenas quando n?o ha tempo para as sentir. O medo ? um grande consolador.
Ao sahirem de S?o Pedro do Sul, entravam os francezes pelo outro lado. Algum destacamento perdido do grosso do exercito, ou talvez esfomeados procurando viveres... Em todo o caso levando o p?nico at? onde chegava o ruido das suas vozes de commando.
E esse dia passado sem comer, porque apenas tinham levado um p?o para cada um, n?o contando com o deserto em que tudo se encontrava, enervava-os, fazia-lhes hallucina??es, mal se podiam sustentar sobre os cavallos.
Chegaram ? Trapa. Oh, a horrorosa terra!--Casitas negras e baixas, feitas de pedras soltas cobertas de colmo e telha v?, sem janellas nem frestas, uma unica porta para dar luz e para a entrada. Mais pareciam t?cas d'animaes selvagens do que habita??es de gente, n'um paiz civilisado.
O av? da Clarinha, apesar de velho a quasi n?o poder mexer-se, viera deitado n'um carro de bois at? alli; mas ent?o desanimou:--que o deixassem, que o deixassem!.. Morria mais descan?ado. Os francezes n?o o descobririam n'aquella terra inculta que se debru?a no abysmo das montanhas e nem de longe se distingue da negrura d'ellas; que fugissem, que fugissem depressa!...--E no egoismo dos grandes perigos ninguem se lembrou de contradizer o velho. Elle era um estorvo na viagem; ficarem todos seria talvez a morte. S? a m?e da Clarinha ficou para acompanhar o sogro, que n'uma incoercivel lagrima de saudade deliu todas as maguas da sua ultima hora. Porventura elle revia n'esse momento unico toda a sua vida passada:--a casa onde nascera e contara morrer, as arvores muito amadas... Festas de familia, perfis de parentes mortos havia muito, casamentos, ca?adas, presentimentos de desgra?a para os filhos e netos, que andavam na guerra...--Tudo isso se devia confundir, amalgamar, no aturvado animo do pobre moribundo.
Os outros continuavam a jornada passando por terreolas abandonadas, d'uma desola??o infinita. Essa regi?o montanhosa, largamente bosquejada, d'uma austeridade de contornos que limita a phantasia, tem sempre uma estranha belleza selvatica, que intimida os mais alegres. Ent?o, precipitadamente abandonada pelos seus bizonhos habitadores, devastada pelos fugitivos que passavam em caravanas, em familias, um a um, como lobos perseguidos, tinha um aspecto quasi tragico, macabro como um desenho de Dor?, mas para elles tudo era bom, tudo divertia e alegrava na excita??o da fuga. Aqui, tinham todos por cama uma casa terrea cheia de palha e de manh? acordavam cobertos com um frio e branco len?ol de geada... Alem, comiam feij?es cosidos sem nenhum tempero e p?o de cevada negro e pegajoso como o pez... E tudo supportavam alegremente no egoismo brutal e profundamente humano--de viver e ter saude.
Tias e primas da Clarinha, velhas senhoras habituadas ? doce paz do ch?sinho conventual, suspiravam, lamentavam-se muito por o n?o terem tomado havia uns poucos de dias! Affirmavam--que antes queriam ficar sem p?o. Deu-se volta aos alforges e n'uma algazarra cheia d'alegria cada um appareceu triumphante com sua coisa, que na precipita??o da ultima hora alli tinha mettido sem saber para qu?, sem mais se lembrar de tal. Havia ch?, assucar e agua, at? chicaras appareceram; mas onde a chaleira?.. Todos os olhos se dirigiram para a panella de barro negro onde se tinha cosido o caldo... Era a unica coisa que havia e essa mesmo serviu; sem que ninguem se lembrasse d'aventar repugnancias... E por essa noite frigidissima de fins de setembro, n'uma casita negra esburacada, perdida entre serras e mattas, ellas tomaram o seu ch?sinho quente, que teve um sabor particular--nada bom a dizer a verdade--mas que lhes lembrou toda a vida.
Subito, interrompendo uma historia que elle ia contando aos da frente, um grito sahiu dilacerante d'uma bocca contorcida. Todos pararam ?nsiados, voltando a cabe?a para traz. Aquelle grito tinha vindo t?o do fundo d'alma, revelava uma tal acuidade de soffrer, que a todos fez pulsar o cora??o pensando em que alguem tivesse rebolado pela montanha abaixo despeda?ando as carnes pelos fraguedos! N?o era isso, mas um sofrimento maior ainda, que gritava assim desesperado:--uma tia da Clarinha salt?ra do cavallo e, pallida de morte, estorcia-se no mais pavoroso inferno de d?res! Estava gr?vida no ultimo periodo e todas aquellas commo??es e sustos tinham apressado a crise. Que fazer? Olhavam-se todos aterrorizados, indecisos... Impossivel parar n'aquelle descampado, seria mata-la... E os franceses!?...
<
E l? continuaram a marcha, agora tristemente acompanhada pelos gemidos da infeliz creatura, que soffria cada vez mais.
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