Read Ebook: A Filha do Arcediago Terceira Edição by Castelo Branco Camilo
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Ebook has 536 lines and 23417 words, and 11 pages
velha sobre-casaca, de panno desbotado, encodeada na golla, e farp?da na botoadura. Os seus olhos pisados, mas ainda penetrantes do brilho da desespera??o, fixavam Rosa com ar amea?ador.
Cruzando os bra?os com a importancia tragica d'um marido de tragedia, que vem, de longes terras, pedir contas a sua mulher, Augusto Leite disse, aproximando-se:
--Parece que me n?o conheces, Rosa?
--Vens t?o mudado do que eras!... n?o admira que te n?o conhecesse, Augusto!
--Pois sou eu mesmo... Vejo que n?o sentes grande prazer com a minha visita...
--N?o te esperava... Como ha seis mezes me n?o escreves...
--Entendeste que n?o havia nada commum entre n?s... Pois, minha amiga, sou teu marido, apesar de ambos n?s...
--Sinto muito que o sejas a teu pesar... Eramos ambos bem mais felizes, se o n?o fosses.
--Parece-te? a mim tambem; mas j? agora o remedio ? seres minha mulher, e eu teu marido...
--Fallas-me d'um modo que me fazes gelar o cora??o!... Que te fiz eu para me tratares assim?
--Eu sei c? o que me fizeste!... n?o me fizeste nada... Penso que me tornaste mais desgra?ado do que eu era...
--Vejo que sim; mas n?o era essa a minha inten??o.. Eu quiz fazer-te feliz; se o n?o consegui, ? porque n?o pude, nem tu me disseste o que eu devia fazer para a tua felicidade...
--O que me perdeu foi o teu dinheiro...
--N?o tive culpa, Augusto...
--Eu, se fosse sempre pobre, n?o me illudia com as esperan?as do teu patrimonio, e trabalharia, estudaria para chegar a ser homem...
--Que hei de eu fazer-te, Augusto!... Eu nunca te aconselhei que arruinasses o que te dei; se soubesse que o meu dinheiro te fazia infeliz, lan?al-o-ia ao mar para me casar pobre comtigo... Mas, se eu fosse pobre, de certo me n?o quererias...
--N?o sei, n?o me importa saber, todas as conjecturas agora s?o estupidas...
--Perd?a as minhas conjecturas... Eu d'antes era espirituosa, segundo tu dizias, que eu nunca o acreditei... Agora sou estupida, ? porque a desgra?a embrutece...
--Nada de ironias... Sabes que estou pobrissimo?
--N?o sabia; mas acredito que o est?s.
--P?des avaliar a minha situa??o?
--Posso; porque eu tambem estou pobrissima.
--Menos que eu...
--Mais que tu... Tenho uma filha que sustento, e cheguei ? extrema d?r de querer comprar-lhe um vestido, e tive de vender um meu, para que a minha filha te n?o envergonhasse... Avalias tu agora a minha situa??o?
--Diz ao teu tutor que te entregue o que tens, e tu administrar?s...
--J? lh'o suppliquei muitas vezes. N?o me concede cinco reis al?m da mesada que me arbitraram... N?o posso conseguir nada... Emprega tu os meios, que eu concedo-te tudo; e, se n?o pod?res alcan?ar mais do que eu, desde j? te cedo toda a minha mesada, e eu e minha filha recorreremos ? caridade da minha amiga Maria Elisa.
--N?o quero caridades de ninguem: quero aquillo que ? meu, quando n?o enterro uma faca no cora??o do tutor...
--Cala-te, Augusto, que me pareces demente!
--? porque eu realmente estou louco... Preciso sahir d'esta desgra?ada vida em que me vejo... Quero dinheiro, Rosa, quando n?o vou com um bacamarte para as estradas...
--Augusto!--exclamou ella, tirando-lhe a m?o do cabo do punhal, que empunh?ra instinctivamente no bolso interior do casaco.
--Tu n?o sabes onde a desgra?a ? capaz de me levar... A sociedade fez-me assim... Se perdi muito dinheiro, perdi o que era meu; n?o roubei nada a ninguem; e a sociedade infame despresou-me, chamou-me homem perdido, e cuspiu-me na cara, porque eu empobreci... Vi-me abandonado, e tornei-me criminoso... Estou cumplice n'um roubo, e, se dentro de tres dias, n?o d?r um conto de reis, sou pr?so, e degradado, ou pendurado n'uma forca.
--Oh meu Deus, que vergonha!...--disse Rosa, cahindo n'uma cadeira, e escondendo o rosto entre as m?os.
--Nada de exclama??es... Esse remedio n?o me presta de nada... Visto que tens uma amiga rica do que era de meu tio, pede-lhe este dinheiro, se me queres salvar... N?o me respondes?
--Augusto!... eu n?o posso responder-te j?... Deixa-me possuir bastante do meu infortunio, para perder a vergonha...
--Isto n?o soffre delongas... Quero a resposta j?...
--A resposta dou-lh'a eu--disse Maria Elisa, que apparecera de improviso.
Augusto cortejou-a ligeiramente, e Rosa ergueu-se tremula, e sentou-se logo, porque lhe faltavam for?as para acolher-se ao seio da sua amiga.
Maria Elisa veio ter com ella, abra?ou-a, deu-lhe um beijo, e levou-a comsigo para dentro. Voltando-se para Augusto, disse:
--Queira demorar-se, que eu volto j?.
Augusto Leite sentiu um abalo que faria parecel-o louco a alguem que o visse. N?o era loucura. Era o contentamento de se v?r possuidor d'um conto de reis, com o qual contava j?. Era a esperan?a de transportar-se com elle a Hespanha a tentar a fortuna, visto que n?o poderia tornar a Lisboa, onde o perseguiam por crime de roubo de uns brilhantes, cujo valor perdera em menos de tres horas. Esta ideia salvadora produziu-lhe uma febre de loucura passageira. Encarou-se n'um espelho, e viu-se como um idiota, penteando as barbas com os dedos. Retesou os bra?os, espregui?ando-se, e murmurou por entre os dentes quasi cerrados: <Add to tbrJar First Page Next Page