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Read Ebook: Noites de insomnia offerecidas a quem não póde dormir. Nº 09 (de 12) by Castelo Branco Camilo

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Ebook has 123 lines and 10350 words, and 3 pages

Tambem elle me n?o reconheceu a mim, sem que eu lhe dissesse o meu nome. Fitava-me com repuls?o, como se a presen?a de um desconhecido o molestasse fortemente; por?m, depois que eu me nomeei, sahiu do torpor, levantou-se de golpe, e abra?ou-me com transporte.

--Que tens tu, Duarte?... Estavas aqui, e n?o me participavas?

--Eu n?o sabia que estavas em Lisboa, nem tinha a vaidade de supp?r que ainda me conhecesses. Desde que te fallei na Foz, em 1856, nunca mais nos encontramos nem escrevemos.

--? verdade; mas nem por isso me eram estranhos os principaes passos da tua vida. Soube que casaste...

--Sim... casei...

--Com aquella menina que ent?o... estava comtigo?

--N?o...--respondeu Duarte com assombrado aspecto, e um sacudir de cabe?a indicativos de azedume por tal pergunta.

Hesitei, ? vista de t?o subita mudan?a, se devia proseguir em tal interrogatorio. Foi elle quem interrompeu o silencio, repetindo:

--N?o, n?o casei com essa...--e acrescentou, pondo-me no hombro a m?o tremula--casei com outra... que j? morreu...

--Morreu?

--Sim, morreram ambas; matei-as eu...

E, erguendo-se, travou-me do bra?o, levou-me comsigo para a janella, que abria sobre um jardim, alongou a vista na direc??o da cupula do convento de Jesus, fez um gesto com a m?o direita apontando para o c?o, e quiz dizer umas palavras que, abafadas pelos gemidos, pareciam rever-lhe nos olhos em lagrimas copiosas.

E eu, que poderia imaginar agora phrases muito apropositadas ? situa??o do meu amigo, n?o as invento, porque n?o lh'as disse ent?o.

E quem seria mais verboso que eu, em lance t?o desusado? Se elle, com effeito, havia matado as duas mulheres, eu, na verdade, n?o devia ensaiar maneiras de o consolar, dizendo-lhe que, se as matou, fizera muito bem. Figurou-se-me que Duarte fall?ra figuradamente. Porque ha muitos sujeitos, ainda mal, que vivem penalisados com remorsos de ter matado certas senhoras, sem ao menos admittirem que os medicos collaborassem com elles. Ora eu que reput?ra, n'outro tempo, aquelle Duarte Valdez tanto ou qu? desarranjado pelas novellas, attribui ao seu romanticismo a parte odiosa no assassinio das duas senhoras.

Passados alguns segundos, fiz-lhe esta vulgarissima pergunta:

--Como as mataste tu?

--Despeda?ando-as uma contra a outra.

P?de ser que o leitor esteja sorrindo; saiba, por?m, que o tremor d'aquellas palavras vibrava tanto do seio do afflicto mo?o que uns calefrios me correram a espinha, e o turvamento das lagrimas me embaciou a vista. Situa??es analogas ter? experimentado o leitor no theatro. Duas palavras, em uma fic??o dramatica, exprimidas pelo actor que pintou os vincos da desgra?a no rosto com fino p? de carv?o, obrigam ?s lagrimas pessoas que n?o chorariam, se a desgra?a fosse com ellas.

--Chora, chora!--me disse elle, com vehemente exalta??o.--Preciso que me chorem, porque... eu morrerei, adorando as duas mulheres que matei... e ninguem me ha de chorar.

--P?des tu contar-me a tua historia?--perguntei eu.

--Posso... quero contar-t'a; mas receio que m'a n?o creias... A minha familia, e os medicos da provincia dizem que eu me deixo matar pela supersti??o, indigna da minha intelligencia... ? um phantasma que me mata, dizem elles... Ah! se o vissem! se eu te podesse contar...

--Mas olha, Duarte, conta o que poderes... Eu hei de comprehender das tuas d?res alguma cousa mais que o vulgar dos homens. At? as supersti??es, se as tens, eu t'as entenderei; porque ha infortunios que n?o podem entender-se, sem a interven??o de alguma cousa sobrehumana.

--Pois ent?o, vou contar-te a minha desastrada vida... Aquella infeliz menina que esteve na Foz, ha dez annos--come?ou Duarte com pausadas intercadencias--seria a minha bemaventuran?a, se eu n?o viesse a este mundo com a predestina??o dos reprobos. Meu pai, desde que eu a tirei da casa paterna, ganhou-me entranhado odio; n?o por causa da culpa; mas com receio que eu remediasse a culpa com o casamento. O seu primeiro acto de vingan?a foi dar a casa a meu irm?o, e reduzir-me a um patrimonio t?o escasso que n?o chegaria ?s minhas despezas de dous annos. Maria do Resgate era mais pobre que eu. N?o desisti ainda assim de casar com ella. Pedi um emprego com a eloquencia da virtude desgra?ada, j? quando a minha subsistencia corria por conta dos paes de Maria. Estava eu em vespera de ser despachado amanuense do governo civil de Bragan?a, quando meu pai conseguiu inutilisar os esfor?os humilhantes que eu fizera para adquirir t?o mesquinho emprego. Fui ajoelhar aos p?s de meu pai: estava ao p? de mim, para me defender dos primeiros impetos da ira d'elle, minha m?i. Eu pedi-lhe simplesmente que n?o se oppozesse ? minha colloca??o. Respondeu que se dava por aviltado, se seu filho fosse exercer t?o ignobil occupa??o; e, sem me dar a confian?a de questionar com o seu orgulho, disse que me dava recursos para estar dous annos em Lisb?a, ou o tempo necessario para me esquecer da filha do procurador de causas.

Minha m?i chamou-me de parte, e aconselhou-me que annuisse; na certeza de que, no espa?o de dous annos, se eu n?o esquecesse Maria do Resgate, ella conseguiria o consentimento de meu pai.

Cedi for?ado pela extrema necessidade. Maria, t?o confiada em mim quanto eu confiava no meu proprio cora??o, accedeu na ausencia dos dous annos. Assim que eu sahi para Lisboa, sahiu ella para um convento de Bragan?a.

Cheguei aqui, e encontrei dinheiro em abundancia, amigos, rela??es, mulheres, liberdade, distrac??es, theatros, c?as, um desafogo de vida t?o agradavel quanto amargurado me tinha corrido o ultimo anno.

?s vezes, em meio dos meus divertimentos, assaltavam-me remorsos. Era ent?o que eu respondia ?s cartas apaixonadas de Maria, e perguntava a minha m?i se j? tinha conseguido amollecer o duro cora??o de meu pai. Respondia-me que esperasse, e Maria respondia-me que esperava uma de duas cousas, que ambas lhe serviam: sahir da sua cella para mim ou para a sepultura. Os meus amigos viam estas cartas, e riam-se da minha credulidade.

Ao cabo de um anno, os remorsos que me incutiam as cartas, j? nem a virtude tinham de as inspirar verdadeiras. Maria graduou por ellas o sentimento frio que as disfar?ava, e disse-me que eu era t?o ingrato que nem ao menos a deixava morrer enganada.

Aborreciam-me j? as lastimas e a obriga??o de as consolar. Sentava-me constrangido para lhe escrever. J? me queixava da sua pertinacia em me accusar de ingrato, quando ella mesma se acommod?ra ? cruel necessidade da separa??o. Culpando-a de indiscreta, perguntava-lhe se quereria para mando um homem que teria de mendigar ou roubar para sustental-a. Aqui havia uma occulta infamia na mentira. Se eu pretendesse em Lisboa um emprego, tel-o-hia, sufficiente ? sustenta??o de uma familia modesta; mas eu, desde que pisei os tapetes dos sal?es, pensava em ter sal?es com tapetes, e desde que as carruagens dos meus amigos me levaram aos theatros, desejei possuil-as para me desquitar de obriga??es aos meus amigos. Eu estava perdido como meu pai me desej?ra; estava deshonrado bastantemente para desviar a imagina??o da filha do procurador de causas, quando as titulares de Lisboa me perguntavam quem era a rainha dos bailes.

Ao fim de dous annos, minha m?i, quando eu j? n?o perguntava o resultado das suas diligencias, avisou-me que meu pai vinha a Lisboa, na companhia de um nosso primo e de nossa prima, chegados do Brazil, com o proposito de nos visitarem.

Estes nossos primos eram naturaes do Rio de Janeiro. Alli fic?ra meu tio, pai d'elles, quando meu av?, que para l? f?ra com o principe regente na qualidade de desembargador do pa?o, voltou para Portugal. Eu sabia d'estes parentes, e muitas vezes meu pai dissera que seria convenientissimo casar um de seus filhos com a prima brazileira, cuja fortuna rendia mais n'um mez que toda a nossa casa em um anno.

Confesso-te miseravelmente que me sobresaltou o aviso da vinda de minha prima. Vi sal?es com tapetes, e vi as suspiradas carruagens. Quem eu n?o vi foi a imagem de Maria do Resgate.

Minha prima Olinda era adoravel, ainda sem riqueza.

Este conceito que formei ao v?l-a e ouvil-a, dispensou-me de o formar, de mim, de grande vill?o. Amnistiava-me com a id?a de que, sendo ella pobre, eu a quereria para esposa. Amei-a, ? certo que a idolatrei. N?o tenho outra virtude que contrabalance com os meus delictos na presen?a de Deus, e d'ella e da outra desgra?ada.

Havia dous mezes que Maria do Resgate me n?o escrevia, quando aqui chegou Olinda, e, passados dous mezes, sahia eu de Lisboa, casado com minha prima, a ir visitar minha m?i, para depois ir ao Rio receber os trezentos contos de minha mulher, e d'alli passarmos a residir em Lisboa, n'um palacio, com tapetes e carruagens.

Meu pai foi adiante preparar as festas da recep??o, e ornamentar as salas para o baile, e a hospedagem para os convidados da nossa grande parentella.

Entrei profundamente triste na minha villa. As janellas da casa de Maria do Resgate estavam fechadas como se houvesse alli morrido alguem. Nas casas visinhas, havia senhoras e crian?as que choviam abadas de fl?res sobre o nosso carro.

Pouco depois que sahimos da mesa do jantar, atravessei com minha mulher a sala de espera, para descermos ao jardim. N'este transito, vimos sahir de um canto da sala uma mulher trajada de luto, que marchou de encontro a Olinda, sem levantar o v?o espesso do rosto.

N?o a conheci; mas mal podia suster-me de convulso.

--Que tens?!--disse minha mulher.--Esta senhora parece que tem alguma cousa que me dizer...

E sahiu sem esperar resposta.

Estas palavras ou?o-as ainda como se a alma da mulher que as disse m'as estivesse escrevendo na consciencia com um estylete de fogo.

--Que ? isto?--perguntou-me minha mulher.

--? uma desgra?a que eu te contarei--respondi torvamente.

--Conta-m'a j?, e remedi?mol-a sem demora--tornou ella.

Escondi-me com Olinda no mais sombrio do jardim, e tudo lhe referi com a sinceridade de um penitente. Ella ouviu-me com semblante carregado, avincando a testa, e ?s vezes com signaes de compaix?o, que de certo n?o era por mim.

Depois, ergueu-se, repelliu com brandura a minha m?o que lhe acariciava o rosto e murmurou:

--Eu ignorava tudo isto. Desgra?a irremediavel, j? agora! Eu quero fallar com a m?i d'essa infeliz menina.

E assim que foi noite fechada, sahiu com um escudeiro, que a conduziu a casa da viuva do procurador.

Suspeito que a conferencia versou sobre a rica dota??o de Maria do Resgate. A viuva repelliu a proposta, porque minha mulher voltando ao seu quarto, disse, como se ninguem a escutasse:

--As deshonradas... de certo n?o s?o ellas.

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