Read Ebook: A agua profunda by Bourget Paul
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Ebook has 705 lines and 41294 words, and 15 pages
um brilho intenso illuminar o seu olhar quasi melancolico, e parar de repente.
Era for?oso que no meio d'essa multid?o agitada, que se movia e expunha n'uma atmosphera cada vez mais suffocante, tivesse observado alguma coisa ou alguem que despertasse n'ella emo??es bem vivas e profundas, porque uma t?o instantanea metamorphose, que para o observador estranho seria imperceptivel, a um simples golpe de vista.
Um perfil observado e reconhecido, entre tantos outros, ao fundo d'uma escada que se preparava para descer, era a causa da sua emo??o; por isso os seus pequeninos p?s se movem com grande rapidez para a transpor o mais breve possivel, olhando sempre por sobre as cabe?as dos transeuntes, para n?o deixar de ver aquella cuja presen?a a havia impressionado t?o vivamente.
N?o tinha o facto em si apparentemente nada de anormal; aquella pessoa era nada mais e nada menos do que uma das suas primas mais intimas, quasi uma irm?, a jovem marqueza de Chalinhy.
Mas a baroneza de Node tinha motivos muito especiaes para ligar uma extrema importancia aos mais insignificantes actos e gestos d'essa supposta amiga:
Este monologo envolvia um d'esses terriveis segredos que a vida elegante muitas vezes occulta com as suas formulas banaes. Ao termina-lo, as suas faces, habitualmente desc?radas, estavam rosadas; os seus movimentos tinham tomado uma tal celeridade, que, apesar dos obstaculos, j? quasi se encontrava junto d'aquella que perseguia.
Alcan?al-a-hia em alguns segundos apenas, quando, repentinamente, come?ou a demorar o passo, como se uma nova id?a a determinasse a augmentar a distancia que a separava da senhora de Chalinhy.
? que, envolvendo sua prima n'um olhar observador, estudando-a, sem que ella a visse, a baroneza de Node, acabava effectivamente de sentir uma nova sensa??o, a principio confusa e inconsciente, depois definida e precisa, a ponto de se tornar o inicio d'uma curiosidade tambem nova, mais extraordinaria e mais viva ainda: parecia-lhe que a outra atravessava a multid?o como alguem que procure confundir-se n'ella, a fim de fazer perder a pista a quem pretenda seguil-a.
A marqueza levava um vestido escuro, que n?o attrahia as atten??es.
O v?o de m?lhas apertadas que escondia o seu rosto, parecia ter sido escolhido propositadamente para tal fim. Caminhava ligeira, como uma pess?a que tem pressa, e sem olhar para nenhum d'esses mil objectos differentes que se achavam expostos por toda a parte em torno de si.
--<
Ainda esta pergunta n?o tinha penetrado no pensamento de Joanna, e j? ella lhe respondia mentalmente da f?rma porque o fariam noventa e nove por cento das parisienses.
--< < Tudo no seu caracter protestava contra semilhante hypothese. A baroneza de Node sabia-o melhor do que ninguem, tendo sido educada com ella, e encontrando-se, por circumstancias que lhe n?o eram muito lisongeiras, ao corrente dos segredos mais intimos da vida da sua prima. Mas quando uma mulher n?o ? honesta--e Joanna n?o o era--n?o acredita nunca, sem reserva, na irreprehensivel virtude d'uma outra. Por isso ? que o mais leve indicio a punha no rasto do que a humanidade em linguagem de giria, chama um < Bastava que a marqueza de Chalinhy n?o tivesse encontrado as pess?as que ia visitar, e que depois, passando pela rua de Rivoli, deante da fachada principal do grande armazem se tivesse lembrado, ? ultima hora, de fazer qualquer compra. Era ainda uma insignificancia o seu fato escuro, o seu veu expesso e a sua passagem quasi furtiva atravez da multid?o. E portanto, esta t?o vaga, t?o gratuita hypothese d'um mysterio culpavel, contrabalan?ava j?, no espirito de Joanna, a longa experiencia que tinha a respeito da natureza de sua prima, por isso que a seguia de longe e sem se approximar d'ella. Via-a caminhando sempre com aquelle passo rapido de quem vae direito a um fim, sem uma distrac??o, sem uma paragem, seguindo de galeria em galeria, e alcan?ar por fim uma porta affastada que d? para o angulo da rua Saint Honor? em frente da rua Croise des Petits Champs. No momento em que a senhora de Chalinhy empurrava a enorme meia porta envidra?ada, foi detida por um grupo de pessoas que pretendiam entrar. Teve que esperar um minuto, e voltou-se. A espionadora, que se achava s? a alguns metros de distancia, para n?o ser surprehendida em flagrante delicto da sua ignobil espionagem, n?o teve sen?o o tempo sufficiente para se voltar tambem e fingir que analysava uns objectos que se achavam ali proximo. Valentina de Chalinhy tel-a-hia reconhecido, ou tendo-a visto n?o se julgaria reconhecida por sua prima? Quando se voltou de novo, Joanna n?o viu mais as duas plumas pretas, que a orientavam n'esta caminhada atravez da multid?o. A crescente suspeita continuava a aguilhoal-a t?o fortemente, que correu para a porta afim de chegar o mais depressa possivel ao vestibulo, do qual se devisavam tres ruas ao mesmo tempo, e descobriu aquella que espionava. A senhora de Chalinhy estava fallando com o cocheiro d'uma carruagem, que evidentemente ali a aguardava, e que retinha o seu cavallo impaciente no meio da rua Saint Honor?, ouvindo attentamente a direc??o que lhe dava a sua cliente, com a m?o collocada no portinhola aberta. Fez um gesto que designava haver comprehendido. As plumas negras perderam-se na carruagem, a pequenina m?o fechou a porta e o cavallo partiu em direc??o ao Louvre, t?o rapidamente que a baroneza de Node n?o teve tempo de procurar outra carruagem que lhe permittisse seguir a pista em que o mais inexperado dos acasos a tinha lan?ado. Chamou um cocheiro que passava, depois um segundo. Ao seu appello responderam o primeiro com um insolente silencio e o ultimo com um ligeiro movimento de hombros. Ambos tinham j? freguezes. --< < Valentina tinha executado a classica manobra: havia descido da carruagem official d'aquelle lado, a fim de justificar a demora em outra parte, confirmando assim o dictado. < Historia rapida d'um odio antigo Para comprehender os sentimentos que uma tal descoberta produziu em Joanna de Node, ? necessario precisar uma situa??o de facto j? indicada, e um estado d'alma mais essencial ainda. Certos actos s?o por si mesmo t?o graves que parecem tocar os limites da nossa culpabilidade. Podem, comtudo, ser ainda aggravados com a maldade dos sentimentos que nos compelliram a pratical-os. Advinha-se logo ?s primeiras phrases d'esta narrativa: que, ? data em que a historia come?a, existia entre a baroneza de Node e Norberto de Chalinhy, marido de Valentina, uma liga??o muito intima. Esta intimidade durava j? havia mais de um anno. Se attendermos a que n?o eram s? os la?os de parentesco que uniam as duas primas co-irm?s mas que, al?m d'isso, tinham sempre sido inseparaveis haviam crescido e brincado juntas, entrado na sociedade juntas, e que uma tal intimidade f?ra sempre acompanhada, e continuava ainda a sel-o, d'aquella afabilidade de palavras e maneiras que constituem a gra?a acariciadora das amisades femininas--ver-se-ha como uma tal perfidia ultrapassa muito os limites d'esses coquetes delictos mundanos que quotidianamente se commettem, com o nome, n'outro tempo t?o grave, e hoje t?o insignificante, de adulterio. O verdadeiro crime d'esta aventura, n?o estava propriamente na falta em si, n'uma trai??o que a fraqueza d'um cora??o perturbado, um casamento infeliz--Joanna estava separada de seu marido havia tres annos,--um amor partilhado, podiam explicar. O verdadeiro motivo do delicto era, por?m, peor que o proprio delicto. Consistia principalmente na mais mesquinha, na mais incomprehensivel, na mais violenta das paix?es de que as naturezas seccas e desprendidas, como a sua, sejam capazes: A baroneza de Node n?o amava Chalinhy, odiava Valentina, e desde a sua longinqua infancia, por motivos t?o impenetraveis, t?o intimamente nascidos no recondito da sua alma que ella propria o ignorava a principio. E ainda hoje mesmo n?o estava muito consciente d'isso. Mas, por mais que dissimulemos os nossos baixos instinctos, a sua vilania n?o ? menos intensa sob as apparencias hypocritas de que os revistamos aos nossos proprios olhos; e era bem a intoleravel revolta de todo o seu ser deante da felicidade de outro ser, que Joanna tinha come?ado a sentir por Valentina, ha muito, quando eram apenas duas crean?as que corriam pelas alleas do parque, de tran?as cahidas, e que continuava a sentir havia trinta annos. No destino de sua prima, s? Joanna via bom exito, e no seu, o infortunio. Pensando e sentindo assim, laborava n'um grande erro. ? que a inveja engana-se sempre que aprecia a alegria dos outros, e ? essa a sua primeira puni??o. Exaggera-a e soffre muito com isso. Engana-se tambem muitas vezes quando, em seguida, trata de preparar a infelicidade que deve constituir a sua vingan?a. Nove vezes em dez, os seus esfor?os, falseados pelo odio, produzem precisamente o effeito contrario. Como muitos dos nossos maus sentimentos, que nos permittem proceder mal achando sempre desculpa para isso, a inveja de Joanna por sua prima tinha-se insinuado no seu cora??o sob a apparencia de delicadas susceptibilidades. Os paes das duas primas eram irm?os; chamavam-se, conforme o costume francez que destruiu a nobreza multiplicando os titulos nobiliarchicos--quando pelo contrario toda a casa nobre deveria ser vinculada n'um s? dos seus membros, seu representante--um o conde e o outro o visconde de Nerestaing. Valentina era filha do mais velho. Este ? que tinha herdado o magnifico solar de familia que lhe dava o nome e que partilha, com os de Rambures e de La Tour Euguerrand, a honra de ser na Picardia a mais bem conservada das fortalezas construidas contra a invas?o ingleza. Pelo facto de nas partilhas ter pertencido esta maravilha de architectura ao representante da familia, tinha o mais novo sido desterrado para uma quinta proxima, denominada < Estas impress?es retrospectivas accentuavam-se. Via-se ainda crean?a, indo procurar Valentina, ? qual tinha fallecido a m?e, para a convidar a passar algumas semanas em sua companhia. Seu tio ia viajar, para se distrahir do desgosto que o torturava. Perdera inexperadamente a esposa, em pleno vigor da vida e cheia de saude. Foi ent?o, durante a permanencia da orf? junto d'ella, que principiou o soffrimento de Joanna. Teve sempre aquelles pequenos defeitos que s?o como que reac??es involuntarias do nosso systema nervoso. Era impulsiva e facilmente irritavel, desigual e caprichosa, guardando sempre para o dia seguinte o trabalho da vespera, desarranjada e estragada, emfim uma d'essas machinas cerebraes mal equilibradas e em que os medicos modernos veem logo um exemplar frisante de hysterismo. Sua m?e, que n?o conhecia a commodidade das desculpas physiologicas, censurava-a sempre pelas suas propens?es maldosas, muito principalmente desde que Valentina vivia com ella, em virtude da compara??o entre as duas. A que mais tarde se devia tornar a gentil castell? do glorioso Nerestaing, era, com effeito, uma crean?a muito equilibrada, muito prudente, muito circumspecta, uma pequena senhora, emfim, e a tia, seduzida pelos seus encantos, estimava-a mais do que ? sua propria filha, ao mesmo tempo que, por uma piedade natural, mas n?o menos imprudente, prodigalisava ? pequenita, que n?o tinha m?e, os mais indulgentes afagos. O secreto e irresistivel instincto de antipathia quasi animal que tinha tornado insupportaveis a Joanna taes elogios e taes ternuras, justifica-se talvez, para uma crean?a de treze annos, pelo ciume da affei??o materna. Esta avers?o tinha-se tornado t?o intensa, que um dia que entrou s? no quarto de Valentina, encheu de tinta os cadernos que estavam sobre a mesa, despeda?ou os objectos que encontrou no armario, deitou ao ch?o e pisou aos p?s o retrato de sua prima, loucamente, furiosamente. Passados dezesete annos, recordava-se ainda do temor, do susto que tinha tido quando a senhora de Nerestaing, que a procur?ra por toda a casa, a foi encontrar n'aquelle abominavel acto de vingan?a. E foi sua propria prima quem pediu e alcan?ou perd?o para ella. Um tal delicto tinha, pelo menos, dado como resultado a partida de Valentina, quasi em seguida, para casa d'um outro parente. A m?e comprehendera tudo. Por uma anomalia apparentemente estranha, mas que se torna bem logica perante a reflex?o, o ciume que tinha por Valentina, foi a causa de que, durante os annos da juventude, Joanna se ligasse a elle mais intimamente. Invejar alguma pessoa ? pensar n'ella. ? sentir por ella. ?, por uma d'estas dualidades desharmonicas, t?o familiares ? nossa natureza emotiva, sentir ao mesmo tempo attrac??o e repuls?o pela sua presen?a. A inveja n?o ?, a principio, nem ? nunca o odio puro. ? mais e menos, por isso que com ella ha sempre de mistura uma admira??o dolorosa, involuntaria, revoltada, mas uma admira??o em todo o caso, por consequencia, uma especie de amor. Assim se explicam na existencia dos artistas, por exemplo, aonde esta paix?o complicada tem como que o seu dominio proprio, as alternativas de exagerada admira??o e de descredito entre dois rivaes, t?o sinceras quanto s?o contradictorias. Dos treze aos dezoito annos, esteve Joanna persuadida de que n?o tinha melhor amiga do que Valentina, e era verdade, no sentido de que nenhuma das suas companheiras d'aquella epocha lhe causava impress?es t?o fortes. Ou fosse porque a fascinassem as bellas qualidades de sua prima, ou porque se revoltasse contra ellas, inteiramente, com uma amargura irritada, tinha-a sempre no pensamento. Quando entraram juntas na sociedade, modificou-se por algum tempo, a sua sensibilidade mal equilibrada, por isso que Joanna teve, ent?o, pela primeira vez, um successo superior ao de Valentina. Esta, que se salient?ra sempre, emquanto as duas viveram n'um meio restricto, pela verdadeira seriedade, pela delicadeza simples, pela harmonia e suavidade de todo o seu ser, passou logo ao segundo plano, quando come?aram a figurar n'um outro theatro. Havia em Valentina uma predilec??o especial pela modestia e pelo retrahimento, e em Joanna um desejo de se divertir e de brilhar que faziam d'uma a mais desconhecida das comparsas, n'uma primeira visita, jantar ou baile, e attrahiam em volta da outra todas as atten??es t?o superficiaes, mas t?o estonteantes, de que as < O caso ? que Joanna se matrimoniou logo no primeiro anno do seu commum debute--e primeiro do que sua prima! A ancia d'este triumpho--o mais lisongeiro para as mulheres--n?o foi extranha ? facilidade com que deu o < ? preciso acrescentar que este casamento satisfazia ao completo edial que paes, desejosos d'um bom partido para suas filhas, poderiam esperar no anno da gra?a de 1890. O noivo era uma figura esbelta, possuia um bello nome, uma boa furtuna e o prestigio que exercem, apezar de tudo, mesmo sobre pessoas de linhagem distincta que viveram durante muito tempo na provincia, < Julio de Node era frequentador das corridas; pertencia a um dos melhores clubs e salientava-se entre essa < Joanna via-se, antecipadamente, gosando uma vida de continua agita??o n'esse turbilh?o que tanto seduz muitas mulheres. O seu orgulho por causa d'esse casamento era t?o profundo, t?o completo, que acabara de cicatrizar a antiga ferida da inveja. Taes cicatrizes est?o, por?m, sempre t?o proximas de reabrir! Nunca, antes, nem depois, estimou t?o intensamente sua prima. Cheg?ra ao extremo de a lamentar, quando comparava o brilhante destino que a esperava com o futuro da supplantada Valentina. Mais tarde teria ella que lhe inspirar egual piedade, mas sem ser fingida. Faz-se s? justi?a reconhecendo, para explicar, ou antes desculpar as amarguras das suas desillus?es, que se este casamento tinha, a despeito das apparencias seductoras, motivos para n?o ser muito venturoso, tinha tambem outros para n?o ser completamente infeliz.
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