Read Ebook: O Carrasco de Victor Hugo José Alves by Castelo Branco Camilo
Font size:
Background color:
Text color:
Add to tbrJar First Page Next Page
Ebook has 823 lines and 41332 words, and 17 pages
loucura, se de uma parte reluz a pobreza radiosa com a sua aureola do trabalho humilde, e da outra rutila a fascina??o explendida dos milh?es.
PERFIL DE VICTOR HUGO JOS? ALVES
Personne de servile condition et de race servile.
AMYOT, ALCIB., Vers. de Plut.
Tudo quanto este homem arengou me pareceu acertado.
A luveira n?o se me delia da id?a.
Ao outro dia fui l?, resolvido a derrear bastante o estylo, de fei??o que me n?o ficasse canhestro comprar, nem a D. Maria Jos? de Portugal vender, seis collarinhos. Por onde, a toda a luz se mostra com que innocentes inten?oens l? fui.
N'este proposito mercantil, entrei; mas, feita a cortezia, n?o pude aparrar a linguagem ao raso de um freguez de collarinhos.
N?o se p?de. Um homem capaz de aconsoantar uma quintilha, n?o sabe regatear com damas camisolas de flanella. O que logo lembra, em presen?a da filha de um principe, se ella ? bonita, e os amores lhe esvoa?am ? volta da regia fronte, ? a mand?ra dos proven?aes, o enamorado Macias, as trovas suspiradas no harpejar do bandolim, ? barbacan do castello, ou mais dentro, se ? possivel.
Assim foi que nossos decimos av?s, se eram menestreis e cytharistas, procederam com as filhas e a?afatas dos reis, n?o contando com as portuguezas, tirante as inspiradoras de D. Jo?o da Silva e de Bernardim Ribeiro--que as restantes princezas sa?ram todas muito descaroadas de poetas, de theorbas e cytharas, bem que a musica foi sempre bemquista dos nossos monarchas, desde D. Pedro I, que tangia trombeta bastarda, at? D. Jo?o IV, que tocava tudo, compunha motetes, e escrevia livros ?cerca da musica. E, se D. Jo?o V n?o exercitava pessoalmente a formosa prenda, folgava de ouvir retroar os cento e quinze badalos do carrilh?o de Mafra, que comprou por mil e trezentos contos de reis. Depois, encontramos o snr. D. Jo?o VI cantando psalmos entre os seus frades; e, hoje em dia, o snr. D. Luiz I, basso primoroso, revive os saraus melicos da sala da Ajuda, como elles foram em Queluz, quando, na orchestra real, regida por David Peres, se viam as loiras infantas de Bragan?a tocando rebeca.
Revertamo-nos, em boa hora, ao conto.
--Mal sabe......
--O qu?, minha senhora?
--Quantas lagrimas eu tenho chorado sobre este jornal...... lagrimas inuteis, que fariam at? sorrir de piedoso motejo as pessoas felizes......
Todas as fibras sensiveis e sonoras da minha alma se desataram ent?o em plangentes melodias de coisas, de que n?o tomei apontamento; por?m, taes e t?o insinuantes lh'as influ? no animo, que vinguei merecer-lhe confian?a e desaf?go de sentimentos circumspectamente abafados.
Esta confian?a, com as visitas diarias, fez-me digno de lhe ouvir, interpoladamente, revela?oens que vou compendiar, de mistura com esclarecimentos obtidos, Deus sabe com que perspicacia e finura.
D. Maria Jos? havia nascido em Lisboa, no anno de 1832. Seu pae era o snr. D. Miguel de Bragan?a, rei n'aquelle anno. Sua m?e tinha sido D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolim de Portugal, senhora portugueza, nascida em Lisboa, e descendente de fidalgos de r?gia plana por bastardia, como ao diante se dir?. Viv?ra D. Maria em companhia de sua m?e, rodeada de pompas, aias, mestras e caricias, at? ? edade dos quinze annos. Lembrava-se de sua m?e ter carruagem brazonada, libr?s, e rela?oens de grande posi??o na aristocracia; e, em meio d'esta disfar?ada felicidade, a vira frequentemente lavada em lagrimas, que de dia para dia lhe iam desbotando a formosura deslumbrante.
Observou mais que as alfaias valiosas desappareceram umas dep?s outras; que a sege foi vendida; que os convivas rarearam ? mesa; que os hospedes da noite foram tambem rareando, e que em fim ninguem entrava na casa desbalisada de sua m?e, sen?o duas senhoras de baixa origem que a n?o desampararam at? ? morte.
Lembrava-se tambem de que sua m?e, nos derradeiros annos da vida, abrira um hotel; e, n'essa posi??o decahida, morr?ra.
A morte de sua m?e n?o sabia ella dizer se foi natural, se violenta. Conjecturava, por?m, que houvesse sido suicidio com veneno contido em um frasco de crystal, que depois se encontrara vasio. Era esta hypothese confirmada pelo caso de sua m?e, na v?spera do dia em que se finou, lhe haver dado um cofre de sandalo, dizendo que lhe n?o podia legar outro patrimonio; mas que, n'aquella caixa, encontraria titulos que a elevassem sobranceira ?s primeiras senhoras de Portugal.
Ora o cofre encerrava cartas do snr. D. Miguel--cartas que ella me n?o mostrava por conterem coisas intimas e segredos de estado de maximo melindre.
Fallecida D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolim de Portugal, a orph?, que ent?o vicejava uns quinze annos, como facil me foi imaginar-lh'os, passou para a companhia das duas mulheres, unicas pessoas que assistiram aos funeraes de sua m?e.
Por conselho d'estas, escreveu a alguns homens insignes e rela?oens de sua casa, participando-lhes que estava orph?. Contava ella que cada palavra escripta lhe custava uma lagrima por sentir-se abatida n'aquella mal dissimulada supplica de esmola. Ninguem lhe respondeu, exceptuado um agiota de ra?a judaica e humilde extrac??o que devia, n?o sabia ella como, a sua prosperidade ? m?e, de quem havia sido escudeiro, mordomo, ou coisa assim.
Quiz este homem leval-a para sua casa; mas, como ella se esquivasse a deixar as duas senhoras, o generoso agiota offereceu-lhe abundante mesada, que ella acceitou para soccorrer as amigas que a n?o podiam alimentar e vestir sem sacrificio.
Aos desoito annos, D. Maria Jos? alcan?ara notaveis conhecimentos litterarios, sem descuidar-se de outras prendas mais caseiras e accommodadas ao seu sexo.
N'aquelle anno de 1850, falleceu o caridoso rebatedor, testando ? filha de D. Marianna de Portugal nove contos de reis em inscrip?oens e um predio pequeno na rua Nova da Palma.
Longo tempo indecisa no destino que melhor lhe quadrava, foi habitar a casinha herdada, porque, primeiro que tudo, almejava a soledade, a tristeza, o recolhimento, a leitura, o chorar sem testimunhas nem consola?oens importantes. Os ultimos lances da vida de sua m?e, e a penuria do seu proscripto pae davam-lhe horas muitissimo amarguradas. N'aquella doentia complei??o havia que receiar quebra de juizo por excesso de sensibilidade, ou morte prematura.
Divulgou-se a residencia da filha de D. Miguel. Muita gente duvidou-lhe da filia??o. Outra acreditou, poetisando o caso de sua natureza prosaico e vulgar como todos os phenomenos d'esta especie. Uns e outros, ainda assim, forcejaram debalde por v?l-a.
D. Maria Jos?, ao abrir da manh?, em dias santificados, ia ? missa d'alva, e voltava a horas em que nenhum homem de siso sair?a da cama para v?r a propria Semiramis. ? casa da Rua Nova da Palma entravam apenas as duas amigas de sua m?e, conhecidas pelas Pic?as, e presumidas descendentes bastardas dos condes de Povolide. Com certeza, por?m, estas duas irm?s, Rozenda e Euphemia, nasceram e criaram-se na casa chamada das Pic?as, onde seu pae tinha sido estribeiro-ferrador, e sua m?e ama s?cca dos fidalguinhos.
Redarguindo contra este argumento dos linhagistas de estrebaria, Rozenda e Euphemia asseveraram--por lh'o haver affirmado a m?e com tal qual competencia, ao que ? de supp?r--que o pae d'ellas n?o era o ferrador; mas sim um monsenhor parente da casa. N?o me recordo bem se diziam monsenhor da patriarchal, se dom abbade de bernardos, declaro. N'este livro, se alguma vez a verdade gretar, ? involuntariamente. Assim que me pruem escrupulos, co?o-os com a rectifica??o. Escrever para a posteridade ? assim.
Aquellas duas senhoras, ambas prolificas, iam com os seus meninos j? pennugentos de bu?o a casa de D. Maria Jos?; e uma d'ellas, D. Rozenda Pic?a, proprietaria d'um hotel na Travessa do Estev?o Galhardo, levava comsigo um filho j? barba?udo que dizia ser litterato-politico, e se chamava Victor.
? certo que a neta dos reis se nauseava, se a indiscreta albergueira repetia similhante injuria; mas tanto era seu juizo que nunca levou a desaffronta al?m do silencio.
Obrigado pelo sobrenome, Victor fez versos vermelhos como sangue de javali. As suas quadras cheiravam a gamella de fressureira. E tambem, nas prosas d'elle, as testas coroadas n?o eram tratadas com mais caridade que a syntaxe.
No emtanto, os criticos ordeiros, vituperando a ira republicana do rapaz, diziam que n?o admirava raivasse tanto contra os nobres quem era filho de um sapateiro, ao qual muitos fidalgos n?o haviam pagado os remontes, e neto d'um ferrador a quem outros fidalgos n?o haviam pago as ferraduras.
Esta matraca, impressa nas gazetas, desvairou o litterato que for?ou a m?e a declarar pelos pr?los que seu defunto marido n?o havia sido sapateiro; mas sim negociante de couros. Ninguem contestou; j? por ser verdade, j? porque ninguem podia desfazer na palavra da snr.? Pic?a, quanto ? mercadoria do snr. Jo?o Jos? Alves, seu marido. Pelo que respeita ao ferrador, guardou ella judicioso silencio em atten??o ?s cinzas do dom abbade de bernardos.
Manteve-se o politico, n?o obstante, socialista e orador de assembl?as populares at? 1854. N'este anno, por?m, ahi por maio, quando as arvores florejam, e as calhandras trilam, e nas quebradas dos montes hervecidos ornejam as poesias lyricas da preceptora de Balaam, achou-se Victor Hugo Jos? Alves invadido d'amor.
Se n?o amaria! Era maio portuguez, sas?o de paraizo terreal, em que a todos nos quer parecer que o matrimonio foi inventado pelos cardeaes na primavera.
Notou-se ent?o no paiz, e particularmente desde o Chiado at? ao Rocio, que o Hugo da travessa do Estev?o Galhardo gorgeava umas endeixas passarinheiras que ninguem creria destiladas do mesmo craneo que trovejara Nemesis clangorosas de odes republicanas! Elle, o Victor, que dissera em dous versos:
Eu hei-de avassallar os reis ao genio, E pol-os histri?es sobre um proscenio, E... etc.
Por algum tempo, o filho de Rozenda conciliou a mansid?o de bardo amoriscado com as fuma?as de publicista revolucionario; mas, por 1855, encontra-o a historia litteraria e politica da Europa a desviar-se notavelmente da vereda do Hugo, que lhe havia de ser bussola entre o Marrare-das-Sete Portas e o templo da memoria, se elle antes n?o pudesse trocar o nicho perpetuo do Pantheon por um logar vitalicio de aspirante de alfandega de raia s?cca.
Este genio, cujas guedelhas serpejavam, revoltas e besuntadas, como id?as a espumejarem-lhe do cerebro ? fei??o do muco esverdinhado que esvurma das fauces de um chacal, revirou-se com effeito, perguntando ao governo se era decoroso que a um filho do snr. D. Jo?o VI--a um rei vencido e exul, se roubasse perversamente o seu patrimonio.
< casa do infantado, ao p?o do proscripto, que lhes fizestes, ladr?es?>> bradava Victor Hugo Jos? Alves no seu periodico socialista.
E acrescentava:
< < < < barra! < N'aquelle tempo, o pudor dos ministros era mais historico e provavel que o da Lucrecia de Collatino. O ministerio publico deu a suspirada querella. Inaugurou-se, pois, o martyrio do Victor Hugo portuguez. Condemnaram-no em vinte dias de gloriosos ferros, e nas custas.
Add to tbrJar First Page Next Page