Read Ebook: O Carrasco de Victor Hugo José Alves by Castelo Branco Camilo
Font size:
Background color:
Text color:
Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page
Ebook has 823 lines and 41332 words, and 17 pages
O ministerio publico deu a suspirada querella. Inaugurou-se, pois, o martyrio do Victor Hugo portuguez. Condemnaram-no em vinte dias de gloriosos ferros, e nas custas.
? o que elle queria.
Declarou-se. Ousou remetter directamente ? neta dos Bragan?as o manifesto nem sempre humilde das suas aspira??es. Estabeleceu confrontos de casamentos em que a desigualdade do sangue era retemperada pelo amor.
Respigando exemplos na propria familia da noiva requestada, contou a allian?a do representante dos senhores de Biscaia com uma neta de um duque de Bragan?a. Bem ? de v?r que o filho de Rozenda ousava equiparar-se aos senhores d'Azambuja e Val de Reis, inculcando-se producto de coito damnado entre o dom abbade de Cist?r e a ama s?cca dos condes de Povolide.
E mais despejada petulancia foi livelar-se elle hombro a hombro com o fidalgo gentilissimo de quem as mais augustas e bellas damas de Portugal solicitavam ? competencia um sorriso, um relance dos olhos requebrados, uma phrase languida de deliciosa pachorra. Elle, Victor Hugo Jos? Alves, a medir-se com as gra?as plasticas do garboso m??o de quem um principe prussiano escrevera isto:... <
Como quer que parvoejasse em displantes de tal atrevimento, Victor cerrava a missiva fazendo votos por que o mais ditoso lance de sua vida fosse o instante em que elle Alves, dobrando os joelhos ?s plantas do rei legitimo, pudesse exclamar: <
<
Donde havemos de inferir que para uso de muitos tolos creou Deus as mulheres formosas, e creou Camoens os formosos versos.
D. ROZENDA
Dizem que disse assim.
BERNARDIM RIBEIRO, Menina e Mo?a.
D. Maria Jos? de Portugal, bem que muito grata ao den?do civico do litterato, n?o entendeu que as filhas dos reis desenthronisados devessem pagar com a moeda do matrimonio um artigo condemnado, que, por via de regra, os emprezarios das gazetas costumam pagar ? raz?o de 800 reis a publicistas de maior p?lpa.
Com os acicates do orgulho cravados no epigastrico, onde a sciencia diz que as paix?es amorosas espoream mais, replicou o bardo absolutista. Dispensando os naturaes raciocinios que desfazem chim?ras de castas, combateu as razoens de D. Maria de Portugal, inculcando-lhe a procedencia visigothica de seu av? D. Guterres Pelayo, e o parentesco ainda n?o safado pelo atrito de dous seculos entre os duques de Bragan?a e os condes de Povolide.
Maria n?o replicou, retransida de espanto. Sua m?e havia-lhe dito que as duas irm?s estalajadeiras eram filhas do estribeiro da casa de Povolide, e que Rozenda era viuva de um negociante de bezerro, que malbaratava os seus haveres no partido dos Cabraes. Era-lhe por tanto espantosa nova o parentesco de Victor Hugo Jos? Alves com a casa real.
Como Rozenda a visse meditativa depois que leu a carta do neto de D. Guterres Pelayo, perguntou-lhe o que tinha, suppondo que o amor motivasse aquella abstrac??o.
A menina respondeu com innocente reparo que o snr. Victor lhe escrevera coisas de fazerem receiar que elle tivesse a raz?o alterada.
Pediu explica?oens a sobresaltada m?e.
Hesitou algum tempo D. Maria Jos?; mas, obrigada pelas instancias, mostrou a carta.
O car?o da viuva, j? enfiado de susto, ganhou c?res quando viu, no contheudo da epistola, o infundado medo da menina.
--Ai! n?o se assuste, snr.? D. Maria Jos?...--disse Rozenda velhaqueando certo pudor no tregeito das maxillas--Meu filho est? muito em seu juizo... Elle diz a verdade...
--Como?--tornou D. Maria Jos? espantada--Pois a snr.? D. Rozenda ? parenta da casa real?!
--Sou, sim, minha senhora--volveu a filha do ferrador, baixando os olhos com pudicicia que parecia pedir misericordia para as fragilidades da m?e. E proseguiu, tirando dois, suspiros do es?phago, e rolando os olhos na direc??o do c?o, d'onde provavelmente a estava ouvindo a alma do pae:
--Perdoae-me, minha santa m?e, se offendo a vossa memoria!
E, expectorando outro bafejo a modo de gemido puchado do diaphragma, continuou:
--Minha m?e era galante, e foi educada no mosteiro de Odivellas, onde tinha j? estado tambem minha av?, que era sobrinha de uma ama de leite que creou um filho da freira d'el-rei D. Jo?o V, a qual freira se chamava por signal a Gar?a, e o menino chamava-se Antoninho. N?o sabia d'estes amores do rei com a Freira, snr.? D. Maria?
--Ouvi contar...--respondeu a outra, um tanto pezarosa de recordar esta fraqueza do seu quarto av?.
--Talvez n?o saiba uma coisa que minha bisav? contou a minha m?e... E era que a freira recebia o rei na cella, e que o rei sa?a de l? at? ? portaria debaixo do pallio com a abbade?a atraz e mais a communidade.
--N?o me conte similhante desatino, que isso ? calumnia!--acudiu a neta do fundador da egreja patriarchal de Lisboa.--Affligem-me...--tornou D. Maria molestamente nervosa--Affligem-me essas funestas e deturpadas paginas da historia de minha familia.
--Acabe com isso, snr.? D. Rozenda!--interrompeu D. Maria Jos? offendida pela teimosia de escavar escandalos nas cinzas do creador da capella de S. Roque.
--Pois sim, menina, eu vou acabar o que tinha a dizer. Como eu vinha contando, minha m?e foi educada em Odivellas com uma freira muito pron?stica, que eu ainda conheci na rua da Bombarda a viver com o pr?gador da casa real, o padre Jos? Agostinho de Macedo, muito amigo do seu paezinho. Ora minha m?e casou com um sujeito que ella imaginava cavalleiro, porque o viu a cavallo na companhia de alguns fidalgos que namoravam as freiras; e, s? depois que casou, ? que soube que elle era estribeiro dos condes de Povolide. Ora imagine, minha rica senhora, a emba?adella que levou a noiva quando soube com quem estava casada, tendo rejeitado as offertas de muitos titulares que lhe tinham querido p?r casa e sege em Lisboa! Emfim, n?o havia remedio a dar-lhe. Resignou-se com a sua sorte, e foi viver ?s Pic?as no palacio onde estava o impostor do homem. Minha m?e era t?o querida das fidalgas que at? a levavam comsigo a visitas como aia e mestra dos meninos. Os senhores da casa e de f?ra perseguiam-na de d?r de ilharga, perd?e-me a express?o, que n?o ? muito civilisada; ao mesmo tempo que o libertino do marido andava ? gandaia por touradas e pagodes, sem se importar com ella. As mulheres n?o s?o santas, n?o ? verdade, menina? Minha m?e era uma perola! Ai! que anjo do c?o aquelle! J? n?o nas ha d'aquella ra?a! Resistiu ?s tenta?oens, passante de dois annos; mas, por fim, o cora??o desconsolado da infeliz esposa enfraqueceu, e... rendeu-se!
Deteve-se D. Rozenda algum tempo recolhida na sua d?r, e continuou:
--Depois d'aquella desgra?a, nasci eu. Meu pae era um alto dignatario da egreja, que morreu d'apoplexia, na v?spera mesmo de um sabbado em que tencionava reconhecer-me e fazer testamento a meu favor e da minha irm? Euphemia, legando-nos os appellidos e uma heran?a em harmonia com o nosso nascimento.
Aqui, D. Rozenda, a malograda herdeira, limpou os olhos onde apenas espumava a humidade serosa d'uma ophtalmia chronica. Depois, ajuntou com suspirosas intercadencias:
--Minha pobre m?ezinha morreu de saudades de meu pae... sim, de meu pae... quero dizer do outro, percebe a menina? O homem d'ella morreu primeiro d'uma borracheira em Queluz, onde foi com os fidalgos de bambochata. Achei-me s?sinha com minha irman, tidas e havidas na baixa conta de criadas de nossas primas. Esta posi??o n?o se dava com a nobreza do meu sangue. Quiz v?r se me admittiam como criada ordinaria do pa?o. A m?ezinha de v. ex.?, que tinha ent?o muito valimento, e n?s conheciamos desde que a vimos, linda como as estrellas do c?o, a passeiar leites na quinta das Galveas, pediu por n?s; mas n?o havia logar. Resolvi casar-me com o primeiro homem endinheirado que me fizesse a c?rte, f?sse elle o proprio diabo em pessoa. Appareceu-me neste comenos o meu defunto Alves, que constava ter cincoenta mil cruzados em sola e dinheiro. Casei-me. Ai! foi outra logra??o como a que levou minha m?e que Deus haja! Ora oi?a, menina. O meu esposo, desde que os chamorros o fizeram pedreiro-livre e regedor, e lhe deram o habito de Christo, n?o quiz saber mais de negocio. Entregou os armazens aos caixeiros, que nos roubaram; e, ? volta e meia, foi-se tudo, e aqui fiquei eu viuva, na fl?r da edade, com o meu Victor no ber?o, e... quer saber? Ainda tive de pagar as custas d'uma querella por causa d'umas cacetadas que meu marido dizem que dera nas elei??es!
D. Rozenda, neste agoniado lance da sua chronica, escumou os olhos com o len?o, e proseguiu, em quanto D. Maria a contemplava com enternecido semblante:
--Poucas viuvas se portariam como eu me portei... ficando pobre e bonita, sem amparo de alguem, sen?o da snr.? D. Marianna de Portugal, sua m?ezinha, que nos valeu em grandes ap?rtos...
--N?o esteja agora a lembrar-se d'isso, minha senhora...--atalhou D. Maria Jos?--Est? bom, est? bom, conversemos n'outra coisa...
--Tudo isto que eu disse--volveu a viuva do pedreiro-livre--veio a proposito do meu filho escrever n'esta carta que os seus av?s s?o parentes da familia real. Se eu sou filha de quem sou, e elle ? meu filho como de facto ?, ninguem p?de duvidar que nobreza n?o nos falta... assim n?s tivessemos dinheiro, n?o acha?--E ajuntou sorrindo e festejando as faces de D. Maria com dengosas meiguices:--Socegue, menina, socegue que meu filho n?o est? doudo nem para l? caminha. O que elle aqui diz na carta ? verdade pura, e bem certa estou que foi a paix?o que o obrigou a declarar isto; porque elle foi sempre republicano e nunca se lhe importou com os av?s; pelo contrario, quando eu lhe contava quem era meu pae, o rapaz mettia-me a ridiculo, e at? uma vez lhe preguei uma bofetada por elle me dizer que acreditava que eu f?sse fidalga por ser muito burra.
D. Maria deu visiveis signaes de enfastiada da longa pratica, e assim tratou de cortar o discurso por onde Rozenda pendia a lhe prop?r francamente o enlace com o filho.
Voltando despeitada a casa, contou a albergueira o succedido, e concluiu por estas acrimoniosas palavras aceradas com um perverso sorriso:
--Ella n?o quer casar com o nosso Victor... tu ver?s... Enfeita-se para o primo duque de Cadaval provavelmente... Ora queira Deus que eu n?o venha a p?r-lhe a calva ? mostra... O folheto ainda ali est? na gaveta...
--? mulher!--accudiu Euphemia--n?o me falles no folheto, que j? foi a causa da morte de D. Marianna! Tu bem sabes que tudo que ali escreveram ? falso... N?o mettas a tua alma no inferno! Deixa-a l? casar com quem ella quizer.
Ora este folheto...
A seu tempo.
O ESTOMAGO DE VICTOR HUGO
Da vara de Epicuro idoneo porco.
HORACIO, Epist., Liv. 1.
E o litterato, como a filha do infante lhe n?o contradissesse a linhagem realenga, nem lhe nevasse desdens sobre o cora??o ardente, pediu explica?oens ? m?e, que lh'as deu, sen?o lisonjeiras, inoffensivas do seu orgulho.
Era muito para lastimas v?r aquelle rapaz t?o soberbo dos desaforados brazoens que lhe procediam da deshonestidade da av?! Tolejando chimeras da sua mascavada jerarchia, cachoava-lhe o sangue como no empenho que, mezes antes, desvel?ra em nivelar-se com a plebe, no intento de lhe trepar aos hombros sordidos para de l? ser visto. E ahi, no atascadeiro da escumalha social, era elle mais nauseativo, porque toda a gente limpa se arreda do cerdo que sahe d'um esgoto, sacudindo-se.
Entretanto, a menina revelava-lhe candidamente sentimentos de affectiva gratid?o, e folgava que elle se nobilitasse na convivencia de pessoas distinctas e amigas de seu real progenitor, as quaes lhe confiavam cartas do principe para que a filha as visse, e por ellas lhe repontasse aurora de esperan?a na longa noite da sua saudade filial.
Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page