bell notificationshomepageloginedit profileclubsdmBox

Read Ebook: Pelo mundo fóra by Carvalho Maria Amalia Vaz De

More about this book

Font size:

Background color:

Text color:

Add to tbrJar First Page Next Page

Ebook has 412 lines and 33183 words, and 9 pages

omo a verdade, falar-lhes-ha de uma velha furia, sedenta de dinheiro e de vingan?as, esmagando os povos, que a maldizem, com o peso das contribui??es mais engenhosas, das que tiram o sangue e a pelle ? plebe opprimida que se lamenta em v?o.

Perguntem-n'o ? Arte, a magica divindade que transfigura tudo aquillo em que toca. Responder-lhes-ha a Diana de Jean Goujon, encostada familiarmente ao veado manso e bello que lembra o principe encantado das lendas, ou mais longe ainda, sempre modelada pelo sublime artista, contemplando amorosamente o mesmo bicho symbolico, que approxima da bocca finamente recortada da deusa a sua bocca de animal, como que a pedir o beijo mysterioso que quebre o encanto que o tem encarcerado n'aquella f?rma inferior e que o restitua bello e victorioso ? antiga f?rma humana.

Responde-lhes a Nympha de Benevenuto Cellini, ora entre as f?ras que ca?ou e os galgos que as perseguiram, ora estendendo-se voluptuosa junto ? frescura das fontes, ora caminhando nua pelos campos, seguida pelo cortejo das nymphas que ella, a Diana immortal, a inspiradora dos eternos amores que n?o se extinguem, domina inalteravelmente pela altiva elegancia e pelo magestoso porte regio.

De todas estas imagens estranhas, inverosimeis, de corpo longo e flexivel, que parecem copiar na pedra dura a fluidez das aguas correntes, o baloi?o ondeante das hervas altas, a voluptuosa flexibilidade das lianas que se enredam e entrela?am,--de todas estas imagens que a arte prodigalisou aqui, a nossa imagina??o comp?e uma s? figura, um s? vulto, uma s? imagem que as concretiza a todas.

? a mulher amada e triumphante, a Diana dos encantos invenciveis e inviolados, a que pediu ? deusa, sua madrinha o segredo dos filtros que fazem parte do seu culto antigo, para ser eternamente amada, contra o tempo, contra a fortuna, contra tudo...

A arte que a immortalisou no marmore devia-lh'o. Ninguem como ella fez da arte uma auxiliar, uma amiga, uma feiticeira cumplice dos seus encantamentos de mulher. Que importa o que diz a historia de Diana de Poitiers? Quem fala verdade ? a Arte. De todas as mil illus?es de que a vida se faz e se comp?e, s? ella ? mais intensa do que a realidade, e mais verdadeira do que a verdade!

Uma das excurs?es feitas por mim com mais prazer ? a dos Museus, tanto artisticos como historicos.

Ha logo ? entrada um busto d'ella que me fez parar enlevada em contempla??o de uma das physionomias mais espirituosas e mais sympathicas que o Passado legou aos nossos dias.

A gente n?o se espanta, ao ver este lindo busto de mulher, de que o original inspirasse verdadeiras e ardentes paix?es, e que at? aos sessenta annos houvesse, n?o quem a requestasse ? moda de Ninon ou de Catharina da Russia, mas quem quizesse casar com ella, como quiz o duque de Luynes, que por signal foi repellido.

Por debaixo da fileira de retratos em que figuram Mirabeau, Robespierre e Marat, est? a cadeira em que expirou Voltaire. A colloca??o pareceria propositadamente feita, sen?o fosse antes uma necessidade de symetria, pois que, encostada ? mesma parede na outra extremidade da sala, est? tambem a cadeira em que expirou B?ranger.

Entre Voltaire e os homens da Revolu??o a affinidade ? vizivel para o espirito, mas o pobre B?ranger ? que n?o vem aqui ao caso para cousa alguma, de modo que a inten??o philosophica que eu ? primeira vista attribui aos conservadores do museu ficou prejudicada pela segunda id?a que elles tiveram de collocar a cadeira de B?ranger em symetria com a de Voltaire.

Acabada a resistencia, o monstro jacobino p?de refocilar-se ? vontade no sangue regio. Ninguem mais se levantou deante d'elle para obstar ao direito da sua vingan?a secular.

Tudo isso que em outro logar e em outra ordem de id?as me produziria a maior impress?o, alli apparecia-me inopportuno e deslocado.

Como aquelles objectos friamente classificados me pareciam estranhos ao tempo de febre de que elles s?o as reliquias, por assim dizer, mumificadas!... ? preciso, para que certas recorda??es do passado nos <>, se apossem ardentemente de n?s, que as evoque a imagina??o omnipotente e creadora de um Michelet ou de um Carlyle! De outro modo, em vez de nos tornarem mais <> o tempo a que se referem, parece que o recuam indefinidamente nos limbos do passado.

Um <> tira a vida aos objectos que encerra; n?o os conserva.

Assim como o processo de enterramento dos egypcios, creado em odio ? morte, concorre para tornar mais saliente a id?a da morte, assim tambem o desejo de conservar certas reliquias parece que lhes diminue a realidade no passado. ? possivel que eu exprima muito vagamente uma cousa que sinto sem a saber muito bem traduzir, mas o leitor intelligente, que tem visto muitos museus e tem talvez sentido esta mesma desconsola??o, comprehende perfeitamente o que ella significa!

Repito, pois: o encanto do museu Carnavalet tirei-o eu de mim mesma, evocando n'aquellas frias salas que percorri, acompanhada pelo indispensavel guia, as figuras que outr'ora as encheram de anima??o e vida.

Vi madame de Sevign? e o seu querido tio, o bom abbade de Livry, que t?o bem se sahiu da educa??o da sua querida e intelligente pupilla.

Foi admiravelmente virtuosa, sem ser por isso implacavel para as paix?es que a cercam, e que fazem d'esse tempo um capitulo do mais accidentado romance.

Amiga extremosa de Fouquet, v?-se em riscos de sahir levemente compromettida do processo do Intendente de finan?as, em cujo cofre de galantes segredos se encontram cartas d'ella. No emtanto essas cartas s?o simples pedidos em favor de um ou de outro protegido da marqueza, e se provam alguma cousa ? a bondade, a generosidade do seu cora??o prompto a acudir e a valer. Se Fouquet guardava preciosamente esses bilhetes formalistas ? porque talvez no cora??o do galante financeiro a formosa physionomia de madame de Sevign? tivesse produzido uma impress?o excepcional; mas isso n?o basta para comprometter uma mulher que as primeiras pessoas da c?rte, em influencia e em virtude, protegem ardente e abertamente. Um dia Tonquedec, fidalgo da Bretanha, e o duque de Rohan-Chabot em casa d'ella, e por causa d'ella, armam uma especie de briga que conclue por um encontro no campo, como todas as brigas d'aquelle tempo. Nem por isso a fama de madame Sevign? soffre a mais leve arranhadura. Que culpa tem ella das loucuras e dos extremos que inspira a sua <> e formosa pessoa!

O conde de Ludre esteve vae n?o vae a vencer as resistencias mysteriosas d'aquelle cora??o de mulher que a precoce experiencia da vida endurec?ra para o amor.

Mas, aquelle asseio de arminho, aquelle amor das cousas justas, rectas e claras, que ? em certas mulheres um preservativo efficaz contra os desfallecimentos da vontade, e o exclusivismo ardente do seu amor materno, salvam-n'a d'essa tenta??o suprema, como a salvam do prestigioso amor de Turenne, da c?rte persistente do principe de Conti, do amor claro ou disfar?ado de tantos entre os melhores, entre os mais queridos e os mais felizes em aventuras femininas.

No meio d'esse fogo que accende, a marqueza conserva-se alegre, calma, gostando das anecdotas picarescas bem contadas, prompta a receber uma confidencia escabrosa, comtanto que lh'a fa?am com espirito e bom humor; indulgente para o amor da sua maior amiga pelo duque de la Rochefoucauld, indulgente para as historias mais ou menos salgadas que de todos os lados lhe v?em aos ouvidos, dotada d'aquella philosophia tolerante que a mulher virtuosa tem como ninguem, porque sabe, como ninguem, o pre?o da virtude.

Insensibilidade? N?o de certo. Amor bem entendido de m?e, e medo talvez de soffrer mais do que soffrera j? na sua curta experiencia da vida conjugal, a que um duello infeliz--e por causa de uma mulher--tinha dado fim.

Quem soube no amor maternal p?r tantos requintes de sensibilidade, t?o intensa paix?o, tanta vida, tanta abnega??o, t?o louco enthusiasmo, o que seria em outra ordem de sentimento em que taes excessos s?o quasi naturaes? O que a salvou foi talvez o exagero da propria sensibilidade. Teve medo de si. Sondou-se e percebeu de que loucuras seria capaz, amando, aquella que da maternidade serena e calma soube fazer uma paix?o tempestuosa. Tendo bebido na infancia o amor dos grandes sentimentos ? Corneille, de que a propria Mlle. de Scudery, a feiissima Sapho fez na sua obra vasta uma grandiloqua caricatura; iniciada pelos seus mestres M?nage e Chapelain nas extravagancias grandiosas da litteratura hespanhola; tudo que provavelmente via em torno de si estava longe de corresponder ao seu ideal de sacrificio eterno, de inalteravel constancia. D'ahi, provavelmente, o seu proposito firme de se refugiar no amor materno, extrahindo d'elle tudo que podia formar o alimento da sua alma exigente, ambiciosa.

Depois ella viveu em uma quadra e em um meio em que o papel de espectadora tinha o maximo interesse e podia satisfazer at? mesmo um espirito como o seu. Tudo que a cercava era digno de atten??o e de estudo. Tudo interessava, ensinava e dava ensejo para longas reflex?es.

O amor e a guerra, como nos romances da cavallaria antiga, fazem d'essa c?rte alguma cousa de excepcional na Historia do mundo.

A guerra j? se v?, n?o como a faziam Frederico da Prussia ou Napole?o, mas a guerra pomposa que celebrou pomposamente Boileau; a guerra em que os banquetes, as festas, os bailes se entremeiavam aos combates; em que um cerco durava longos mezes, e cada marcha parecia uma cavalgada festiva...

Ella tem a curiosidade intelligente de todos os phenomenos de ordem moral e intellectual. Interessa-a o espectaculo das paix?es humanas e achou um theatro perfeitamente adequado ao genero de observa??es que mais a divertem.

O amor sem outra lei que n?o seja a inconstancia e o capricho; a ambi??o sem outra restric??o e outro limite que n?o sejam os que fatalmente lhe imp?e a fraqueza humana; a inveja, a soberba, a cubi?a mais desenfreada, o orgulho ao mesmo tempo mais feroz e o mais cheio de aberra??es inexplicaveis, orgulho que principalmente se compraz nos excessos mais abjectos do servilismo--e todos estes diversos sentimentos, uns simples, outros complexos, uns harmonicos, outros contradictorios, manifestados atravez de caracteres em que ha ainda relevo, contorno accentuado, individualidade inconfundivel, energia pessoal.

P?de haver espectaculo mais digno de interesse, contempla??o que sem talvez elevar o espirito o divirta e o instrua mais?

N?o ?, por?m, o jogo complicado, brutal ou subtil do interesse e das paix?es pessoaes, o unico objecto de estudo para o espirito de madame de S?vign?. Ella tem uma vasta leitura, uma aptid?o para se interessar pelos estudos mais aridos, quasi maravilhosa.

No final da minha visita ao museu, quando eu tinha achado prazer infinito em evocar estas vis?es do passado, e muitas outras que n?o podem caber no limitado espa?o d'estas notas, o guia que n?o sei porque tinha sympathisado commigo e com meu amavel companheiro, decidiu de si para si que n?s eramos dignos de ser apresentados ao conservador do museu, Monsieur Cousin, que n?o sei se ? parente do celebrado philosopho do eclectismo.

Levou-nos, pois, a um gabinete reservado onde nos esperava uma encantadora surpreza. Monsieur Cousin vive fechado em uma pequena sala, furtada a todas as vistas profanas, imaginem com quem?

N?o, a maneira por que madame de Grignan se achava representada n'aquelle gabinete escondido, era por meio de um esplendido retrato de Mignard. A filha da encantadora marqueza apparece alli formosissima. Cabellos de um louro fulgurante, veneziano, o louro de Ticiano, ou de Palma Vechio; pelle branca, transparente, atravez da qual se sente gyrar um sangue vivo e puro, olhos azues de uma belleza profunda e rara, penteado levantado na frente e voluptuosamente entrela?ado de rubras fl?res de romeira e de fl?res brancas de laranjeira.

No peito, completamente decotado, um ramo vi?oso das mesmas fl?res.

--Fl?res de Proven?a, fez-me notar Mr. Cousin, com aquella nota carinhosa na voz, que revela o namoro de um velho sabio, o namoro que o seu homonymo Cousin teve pela duqueza de Longueville e pela de Chevreuse!

--Fl?res do meu Portugal, atalhei eu, que ao v?l-as tivera tanta saudade do meu pequeno paiz longinquo.

Se a minha antipathia a Mme. de Grignan n?o fosse fundada e irreductivel, tinha-a destruido de certo este adoravel retrato que a representa verdadeiramente formosa, e o que ? mais, seductora! retrato que, apezar de ser de Mignard, parece feito na maneira ampla e superior dos grandes mestres.

Assim a viu o pintor, assim a viu sua m?e, assim a v? em pensamento e feliz enlevo o velho conservador, que se fechou com ella em um quarto e que a n?o deixa avistar se n?o a raros profanos!

O meu passeio pelo Museu Carnavalet mais me confirmou na eterna ironia das cousas grandes ou pequenas!

Mas ter?o esses porventura sufficiente poder para banalisar uma figura como a do Imperador?

Depois, eu fui criada por uma m?e enthusiastica de gloria, no culto quasi fanatico de Napole?o.

Tantas mudan?as teem passado pela Fran?a desde que, em uma ilha solitaria e longinqua do Oceano, o grande homem expirou, renegado e abandonado por todos os seus, que eu receiava encontrar l? muito esmorecida a sua memoria, muito apagados os vestigios de sua passagem.

Enganei-me. A lenda napoleonica resuscita com insolito vigor n'essa Fran?a de que ella foi a gloria ultima e inultrapassavel!

Havia n'essa occasi?o justamente em Paris a exposi??o dos quadros de Meissonier, e essa exposi??o admiravel dominavam-n'a dois quadros, que nunca mais podem ser esquecidos depois de uma vez terem sido vistos.

? o momento culminante da epopeia grandiosa. Sobejam os assombros, os crimes apparecem n'um esplendor de purpura que lembra menos a c?r do sangue do que a c?r da aurora!

A tyrannia j? se revela em mil symptomas da vida do conquistador e da vida do imperante. Os povos j? perguntam n'um brado ululante de angustia em nome de que direito derrubam os seus thronos tradicionaes e lhe invadem os seus lares pacificos!

Mas ah! mais forte do que esse gemido desolado das na??es invadidas, mais forte do que o choro convulso das m?es a quem arrancam continuamente os filhos, os mais bellos e os mais fortes,--? o clangor bellico do clarim que avisa a Fran?a da suas victorias incontaveis! Lodi, Arcole, Rivoli, Marengo, Iena, Austerlitz, est?o em todas as boccas, produzem em todos os cerebros o assombro, o respeito, o enthusiasmo!

O heroe vem can?ado, abatido e triste. Cavallo, cavalleiro, cortejo militar, paizagem circumdante, tudo respira a mesma desola??o e o mesmo abandono!

Entre um anno, o da gloria soberba e unica, e outro, o da derrota universal, quantos crimes de lesa-na??o, de leso-direito, at? de leso-entendimento. Napole?o acab?ra por sentir aquella embriaguez dos Cesares que os atirava ao crime e ? loucura em virtude de uma attrac??o irresistivel e fatal.

Add to tbrJar First Page Next Page

 

Back to top