Read Ebook: Da Loucura e das Manias em Portugal by Machado J Lio C Sar
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Ebook has 320 lines and 27164 words, and 7 pages
Este, sentado no ch?o, junta um montinho de folhas, e depois disp?e-as a seu modo em carreirinhos: mas, se succede desmandarem-se-lhe, faz como a Sibylla de Cumas, que em o vento lh'as espalhando tirava dali o sentido. Depois, vergando a cabe?a, fica a olhar para ellas...
J? estiveram alguma vez ao p? de uma cova aberta no cemiterio? Chega a parecer que os cadaveres s?o as almas dos tumulos, e que o sepulchro ? que morre em n?o tendo ossos dentro.
Tambem com os idiotas, quando a gente olha para elles, pergunta o que ser? feito do que devia ter havido dentro d'aquellas cabe?as, e parece que elles ? que n?o existem j?.
Lembram o cortejo de Momo. Anda-lhes o corpo a cavallo nas pernas; teem cabe?a de quem viu bicho; esgroviados: sorrir bruto: dando sempre aos hombros: uma especie, nos modos, do perfil de uma bengalla com cast?o figurando um sagu?; voz difficil; meio gagos: o que quer que seja de um palha?o morto!...
Um, perdeu de todo a memoria, depois de um ataque de congest?o cerebral; e est? para ali sem dar accordo de si. Tratam-o como ?s crean?as; recommendam-lhe que n?o metta os dedos no nariz, e que n?o ande de joelhos pelo ch?o para n?o estragar as cal?as. Elle ouve, e esquece-se.
Alguns mastigam palavras, as mesmas palavras sempre, muito contentes, a rir sosinhos...
Passam ali a sua vida, no pateo, e quando olham uns para os outros--n?o sei se se v?em. Toda a gente faz alguma coisa, elles n?o fazem nada; toda a gente pensa alguma coisa, elles n?o pensam em coisa alguma; at? os animaes teem memoria, e lembram-se de quem lhes faz mal, de quem lhes faz festas, conhecem as pessoas com quem teem vivido:--elles n?o se lembram nem conhecem ninguem. Uma aranha ? mais do que elles! a aranha arranja a teia, elles n?o arranjam nada!... De f?ra d'aquella casa, anda ahi pela cidade o espirito, a religi?o, a politica, a honra, o crime, as desordens da turba: elles n?o sabem nada d'isso; est?o exilados no mundo, e ouvem apenas cortando os ares os gritos bravios dos furiosos!
Os furiosos
Estes j? n?o tentam dissimular o estado em que se acham,--triste prova de que n?o conservam sequer um restosito de juizo!... De physionomia vivaz e animadissima, semblante exaltado, olhos extraordinariamente mettidos pelas orbitas, pelle encarquilhada, face cavada e esqualida, saltam-lhes por entre os bei?os cor?dos pela febre, como por um arquinho vermelho, gritos e apostrophes que nem dardos!...
T?em id?as, mas fugitivas, sem liga??o, quebradas. Grande agita??o, grandes accionados, grandes berros. Ora vem, ora v?o. Fallar sem descan?o,--para um--para outro. Puchar a enxerga, atirar com a enxerga. Ir ?s grades; segurar, apertar; lucta da carne com o ferro... Vontade visivel de apanhar alguma cousa ? unha, de poder deitar-nos a m?o. Mas,--nem mesa, nem cadeira: nem, ?s vezes, uma tigela para despeda?ar...
--Anda c?! Olha! Chega aqui! dizem alguns, com perfida languidez, certo agrado felino, o risinho da hyena,--a morrerem de desejo de nos saccudir de encontro ?s grades.
Alguns fallam em dinheiro, desconfiam que fomos n?s que os roub?mos. Outros, de amores; recordam-se, inquietam-se, agitam-se, enfurecem-se... Alguns t?em ainda o sentimento da ambi??o, querem grandezas,--d'essas mesmas grandezas pequenas que por ahi se arrastam de gatinhas com ares de ir n'um andor--e gritam que s?o magnates e figur?es: a tal ponto ? profunda nas creaturas a vaidade, que mesmo mortas para o mundo ainda conservam a id?a de alardear possan?a! Mas j? n?o t?em sequer, como os outros, papel doirado, para fazerem cor?as; nem ha coberta na enxerga para poderem fingir que se embrulham no manto dos imperadores...
Donde prov?m o mal?
Quem poder? sabel-o! De alguma paix?o desordenada, enorme, extrema. Quem nos diz at? que a loucura n'aquelle grau, a loucura d'aquella qualidade, n?o seja simplesmente a paix?o levada ao excesso?... Est?o ali durante as horas do ataque, as horas da furia, fechados nos quartos, quasi ?s escuras para que a claridade lhes n?o fira a vista. No decorrer do anno, ligeiro para n?s, pesado e cruel para elles, quantos dias de agita??o e de tortura,--com as m?os atadas, os bra?os presos, as ra??es da comida diminuidas; e as grades, as grades frias e negras, por unico horisonte e unica companhia!...
J? n?o ha ver ali a gordura pag?; s?o magros quasi todos, e parecem velhos: a loucura ainda envelhece mais do que as paix?es; abatem-os, dissecam-os as furias; alguns parecem esqueletos, que a ira unicamente acorda; um ou outro tem a m?o finissima, m?o de quem n?o faz nada, de quem n?o trabalha ha annos; de outras vezes parecem os ossos da morte com pelle por cima... em ar de luva!
Ali gastam e consomem a vida, separados, presos, isolados, nas agonias insondaveis da desespera??o. S? a m?e de algum ou a mulher, v?o v?l-o; unicas dedica??es n'este mundo que n?o abandonam as angustias persistentes. L? esteve um, famoso e illustre, o mestre do folhetim em Portugal, e sua esposa ali foi todos os dias vel-o e fazer-lhe companhia--colhendo no ceu a palma do combate terrestre e vendo sorrir-se para ella e abra?al-a meigamente aquelle ente querido, que havia representado um dos primeiros talentos d'esta terra, e que parecia, lucidamente, dizer-lhe com a vista que deve um dia ser feliz na eternidade a alma que n'esta vida teve dedica??o pelo infortunio!
Mas, em geral, como se os olhos humanos n?o devessem contemplar o espectaculo d'aquella d?r horrivel, poucos s?o os que teem quem os visite, e ali se conservam at? que um dia o padre do hospital v? junto d'aquella enxerga resar-lhes ao ouvido, e, na hora em que v?o emfim libertar-se do mundo, fazer a diligencia de que elles repitam as ora??es que lhes disser...
Todos ali, mais ou menos, se entreteem e se divertem. S? elles n?o. S?o os poetas da casa;--sonhar, soffrer. Mesmo se teem officio, ? raro aquelle que pode aproveital-o uma hora ou outra,--e isso mesmo ? arriscado ?s vezes. L? vi, quando fomos visitar as officinas, um que dizem ser excellente marceneiro e de quem me mostraram um trabalho curioso:--uma maquineta, como costuma chamar-se-lhe, um nicho de madeira para Santa Philomena,--santa com que tinha grande devo??o uma enfermeira de Rilhafolles, que f?ra educada n'um convento de freiras de Leiria, e que morreu ultimamente doida n'este mesmo hospital onde f?ra empregada. As outras enfermeiras, em obsequio ? memoria da sua antiga companheira, conservam o culto ? santa.
O nem sempre amavel marceneiro estava logo ? entrada das officinas com o banco e a ferramenta, na occasi?o em que o director o convidou a mostrar-nos as suas obras.
--Mostrar o que? berrou elle; e logo se lhe injectaram os olhos; e travando de um peda?o de taboa partiu-a, batendo com ella no banco.
--Bem, bem! disse o director. Hoje est?s muito zangado; deixemo-nos d'isso! E virou logo comigo pelo mesmo caminho.
Uma circumstancia interessante ? a placidez do director, o desembara?o com que anda por entre os doidos, e a bondade e descan?o com que os trata. ? isto resultado do seu genio, e em parte tambem de querer dar exemplo aos empregados de que n?o deve ter-se medo dos doidos, porque o medo aconselha cobardemente toda a especie de crueldade. Em vez de injurias e de chicotadas, como se usava d'antes para com os pobres furiosos, sem se lembrar ninguem de que mais humana seria a lei que de vez os condemnasse ? morte, emprega-se o geito, a do?ura, o bom modo, para n?o espatifar brutalmente, e apagar de todo aquelles restos de intelligencia, que ?s vezes s? de passagem est? nublada.
Todos mais ou menos se entret?em ali e se divertem alguma vez, menos os furiosos. Ha theatro de tempos a tempos; e pelas festas de junho, arraial.
De ordinario os doidos que representam,--dos mais quietos, j? se v?, e dos que costumam estar dias, semanas, mezes ?s vezes sem dar signaes de aliena??o--dizem os seus papeis regularmente, mas falta-lhes express?o de physionomia, gesto, movimento, olhar, tudo que auxilia e completa a phrase. S?o espectaculos mais curiosos do que recreativos.
At? os idiotas poder?o bailar nos arraiaes ao som da flauta do companheiro:--os furiosos, n?o; arredados de tudo e de todos, h?o de ir gritando, extorcendo-se, rugindo na solid?o atroz do seu carcere!...
O sentimento da liberdade, que sobrevive a todos, at? nas creaturas que perderam o juizo, n?o os abandona ainda assim. Querem sair, sair!
As mulheres s?o mais furiosas do que os homens. Estes de ordinario agitam-se durante horas, depois caem prostrados no somno lethargico que succede ? furia. Ellas, fallam e berram, dias, noites inteiras, e tornam-se mais notaveis nos insultos, no descomposto do fato, e at? nas tendencias malfazejas--atirando sempre que podem uma tigella contra as grades, e os cacos ? cara de quem vae.
Algumas s?o verdadeiramente horriveis.
Uma gira todo o dia--mas todo o dia!--descal?a, em roda do quarto. Tira-se-lhe a enxerga para poder andar n'aquellas voltas, como a hyena na jaula. Depois, ? noite, p?em-lhe a enxerga: cae sobre ella, e enrosca-se.
Uma rapariga de Coimbra, que n?o falla sen?o de um retrato, tem de estar de collete porque marinha pelas grades.
Aquella, de Lamego, que d? pancadas em quem apanha, atira com o p?o em peda?os--para as almas!
Esta, de Guimar?es,--com certo ar de astucia machiavelica no fundo da loucura--est? doida um dia sim, um dia n?o. No dia em que n?o est? doida, trabalha. ? uma aliena??o ? maneira das sez?es.
--Como est?? pergunta-lhe o director.
--Sempre estou boa! responde ella.
--Ah! E ent?o?
--Ent?o sardinha com p?o!
E, sem mais nada, enfurece-se, grita, amea?a, quer saltar, terrivel, hedionda, como se a noite e as Parcas lhe desenhassem no semblante as caretas da loucura.
Um mo?o esbelto e forte conserva-se de gravata de coiro, para n?o poder dobrar o pesco?o--porque se morde.--Um velho grita por tal f?rma, que ?s vezes, de noite, as patrulhas de Arroios t?em ido, sem saber o que ?, em procura do sitio de onde vem aquelles ais...
Passados dias,--por n?o haver trazido apontamentos dos furiosos na primeira visita que fiz a Rilhafolles,--tive de voltar ali.
A tarde declinava, e os ultimos raios do sol iam a despedir-se d'aquellas tristes paredes. Ao passar com o sr. dr. Guilherme Abranches, que teve ainda a bondade de me acompanhar, por um d'aquelles corredores que serpenteiam ali em todas as direc??es, vi dois homens sentados ? porta de um quarto.
--Est?o de guarda ao cadaver! disse-me o director.
Entr?mos no quarto, vi um embrulho no ch?o, como que o corpo de um homem amortalhado,--um boneco, suppuz eu,--e duas tochas ao lado.
N?o era boneco, era deveras um cadaver.
Aquelle era talvez o mais feliz de quantos ali ficaram n'essa noite. J? n?o ouvia sequer os clamores da raiva, os rugidos da paix?o, os arrancos de desespero e de furia dos companheiros. Estes est?o mortos tambem, de alguma maneira; mas ? de mais, e ? pouco! Se aquelles bra?os que se agitam, se aquellas vozes que estrugem, se aquelles dentes que rangem s?o a materia--que ? da alma?...
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? saida, o jardim ? triste, triste; e os pingos de chuva, que ficam nas p?talas das flores, brilham que parecem lagrimas. Depois, se se levanta a cabe?a, estremece-se ao ver o ceu, como contraste--por cima d'aquella miseria continua!...
Telha
Tambem os ha c? por f?ra!
Avista-os a gente por essas ruas, sequiosos de barulho, persuadidos de que t?em para cumprir uma miss?o, exercer um sacerdocio, defender uma causa, fazer tremular victorioso um estandarte; e observa com estranhesa que, sem se saber de onde v?em nem o que querem, sem que alguem j?mais os visse entrar n'uma escola ou comprar um livro, desprezem o mundo que os quiz empregar n'alguma cousa, e embirrem em ser tribunos unicamente, tribunos e heroes, pr?gando umas celebreiras no tom de quem salva a patria!
Pasma-se de ver outros atravessando a vida com ares de visinho--descarapu?ado e de chinellas--sem mais bagagem do que a sua insolencia, altivos e petulantes, por entre a risota da multid?o.
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