Read Ebook: Fialho d'Almeida by Villa Moura Bento De Oliveira Cardoso Visconde De Carneiro Ant Nio Illustrator
Font size:
Background color:
Text color:
Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page
Ebook has 998 lines and 34084 words, and 20 pages
Era quasi noite. A matriz bateu n?o sei que horas, com aquella solemnidade triste, que ? do dobrar dos sinos de todas as villas...
Dei-me a imaginar a infancia de Fialho, partilhando daquella melancholia, pelas grandes tardes morrinhentas de Villa de Frades, com todo o primeiro mundo da sua inicial e subconsciente comparticipa??o da Vida...
Ali, de facto, naquella humillissima escola, cursara elle as primeiras lettras, de par das primeiras contrariedades, ao lado do pae, o mestre escola da terra, <
E, em verdade, tanto como a casa onde nasceu, mais ainda, talvez, se me prendeu da alma aquella capellita das suas primeiras canseiras.
Ahi deveria, porventura, estabelecer-se o Museu-Fialho, uma vez que uma dezena de amigos, refiro-me sobretudo aos seus amigos de leitura, se concertasse para juntar em tal logar, com os seus livros, tudo o que pudesse considerar-se como reliquia da sua obra ou memoria.
Da casa de Fialho, em Villa de Frades, hoje quasi vazia do peregrino espirito que a encheu, lembrarei especialmente o quarto do Artista, onde, por acaso, quedam algumas arcas com revistas que excluiu da sua livraria, destinada ? Bibliotheca de Lisboa, legando-as a um amigo que ainda as n?o levantou, e, nas paredes, duas telas da sua auctoria.
Propositadamente trazemos a publico a noticia, que cremos em primeira hora, daquellas telas, ambas m?s, de figuras religiosas, de tintas empastadas e peior desenho, pelo interesse de documentar o seu esfor?o de plastico, que o fez pintor, em segredo, a elle, o critico impertinente dos maiores pintores do seu paiz!
Finalmente, resta-me apontar, o trecho fronteiro ? casa, systema absorto de outeiros verde-suaves, que se me depararam conhecidos, como se, de sempre, os houvesse visitado.
E, de facto, era quasi assim. Conhecia-os, havia muito, de algumas das paginas mais luxuriantes do Escriptor, onde elle, o magnifico colorista, a espa?os se deu a pint?-los daquella tinta intima que lhe veio, pelo tempo f?ra, das suas memorias e impress?es de infante.
Despe?o-me, ? pressa, da sympathica terriola, como quem foge do tumulto de lembran?as que me vem da casa, daquelles outeiros, dos primos de Fialho, do Irm?o, irreprehensivelmente estatual no seu papel de symbolo rigoroso; e parece-me receber das m?os deste fios da tragedia, ainda viva, das primeiras desfortunas do Artista, as que lhe advieram da quasi miseria da sua segunda infancia, e cuja recorda??o o obrigava talvez, mais tarde, a fugir dali, por morphinizar-se do aborrecimento em commum por terras de mais convivio.
A Casa da Cuba, que em geral preferia, quando estava no Alemtejo, ? um edificio melhor que o de Villa de Frades, tambem terreo e de compartimentos amplos.
Nesta casa fui encontrar enferma, na mesma alcova em que o Artista agonisara, a sua antiga legataria,--uma senhora de edade da Familia Carapeto, a quem devo o offerecimento dos retratos de Fialho que illustram a presente noticia e alguns dos seus esclarecimentos.
Pouco me detive nesta sua antiga morada, e o tempo que ali quedei foi no terra?o, velho miradouro de gosto mourisco, donde se abrange, numa extens?o de leguas, o mais das terras seccas que circumdam a Comarca.
Cuba ? das povoa??es mais incaracteristicas e sem interesse que encontrei no Baixo Alemtejo. Lembra, pela monotonia do seu casario reverberante, certas povoa??es de Hespanha, da Mancha, sobretudo, e que, em vez de quebrarem a aridez das chans, servem como que a memor?-las, t?o irmans da estepe parecem crescer da terra.
Avalio, com tristeza, do viver do Escriptor na villa, quando, obrigado pelas mil coisas desagradaveis da sua vida, em que parece n?o ter figurado pouco a intriga politica da ultima hora,--se recolheu aos seus telheiros.
Fez o acaso que me defrontasse com o proprietario da Tabacaria, em que passava uma parte das noites, a conversar, por distrahir-se e illudir a monotonia que o cercava.
Deu-se-me logo o snr. Fonseca, n?o afian?o o appellido, como tendo sido muito da intimidade de Fialho, propondo-se reproduzir factos e retalhos seus de conversa que, ? claro, lhe sahiam pouco authenticos...
--Conheceu-o pessoalmente? me perguntou elle, a meio das suas tiradas.
E, ? minha negativa:
--Pois olhe que era melhor ouvi-lo, do que l?-lo!
Os livros valem pouco, accrescentou, em compara??o com o que elle aqui nos contava...
E logo continuou a palavrear ?cerca do Artista, emquanto eu me explicava a sua vida final, o suicidio provavel, os caix?es de revistas que vira em Villa de Frades, e com as quaes elle, por ultimo, quasi obrigado a viver ali, bem por certo, de volta a casa, iria feriar-se daquellas noites mal conversadas com quem, por falta de ouvidos, n?o podia ouvi-lo,--a elle que fora em Lisboa, o primeiro de um cen?culo de que haviam feito parte, entre outros, artistas como Ramalho e Bordallo, ao lado de curiosos, ?s vezes, valha a verdade, bem inferiores ao sympathico negociante, que, ao menos, herdara do seu convivio a devo??o supersticiosa da sua memoria!
Como quer que seja, pois que Fialho passou em Cuba os ultimos annos da sua vida, importa-me naturalmente escrever da pequena cabe?a da comarca o pouco que della apontei de m?s lembran?as.
Como acima referi, n?o tem ella, para mim, a bem dizer, outro interesse alem do que lhe advem do facto de ter sido o derradeiro exilio do Escriptor, que se dava a disfar??-lo, administrando directamente as suas herdades.
Especie de villa improvisada, sem paizagem que pudesse entreter, por momentos, o espirito, aliaz exigentissimo do Artista; sem edificios de valor; com reparti??es inferiores; avenidas lugubres, no geito da Alameda, sobranceira ao Caminho de ferro, e sombria como uma rua de cemiterio; habita??es mesquinhas, servidas de ruas mal cal?adas; a Esta??o, a distancia, quasi que fugida da terra que a fizeram servir--tal ?, de facto, Cuba, cujo casario abre sobre a campina formidavel do sul como uma aguarella infima!
E, entretanto, foi ali que Fialho quiz ficar, e mandou que lhe erigissem o mausoleu, que visitei na ultima tarde da minha estada em Cuba, depois de dolorosos transes para arrancar duma adega o chaveiro do Cemiterio.
Comtudo, ao lado dum tal coveiro segui eu at? ao cemiterio de Cuba, em que, aliaz, coisa alguma de notavel fui encontrar.
Imagine-se um cercado alto, com o ar de casa, ? qual o vento arrebatasse o telhado, arruamentos de capellas e arcas com lettras de pedra, uma especie de convento de ossos, onde todos os dias ha camas de terra revolvidas e cruzes novas;--a frieza dos brancos e solemnes livros de marmore, das flores, ali casuaes e tranzidas, dos esguios arvoredos, como de todo um pequeno mundo de symbolos;--uma lage-obstaculo em cada campa, e, como a fechar mais os que jazem, gradis, linhas de cimento juntando as cantarias, mais um complicado e diabolico systema de cremalheiras e cadeados!
Eis o cemiterio de Cuba, cujo desenho ?, de facto, o de todas as grandes ou pequenas cidades de mortos, dos quaes os vivos se v?o desquitando, mais ainda do que cobrindo-os daquelles obstaculos,--quasi esquecendo-os para ali, onde perpetuamente ter?o de ficar, afastados de tudo, onde j?mais chegar? o proprio carinho selvagem dos temporaes, s?s, entre os silencios negros da sua noite immensa, velados dos elementos, a par das esculpturas somnambulas dos tumulos, tambem de si indifferentes, abstractas, e, como por acaso, ali dispostas, ainda por erguerem o formal e glacido tributo da sua agonia fria e lapidar!
Ora, isto me ia eu recordando, ao seguir, mais o coveiro, pelo cemiterio de Cuba, do mesmo passo que, sem querer, lembrava certas passagens da Obra de Fialho, que, de momento, quasi me falavam, e, eu sentia, como que batidas de vento, ao meu ouvido...
Ainda mais, lembro-me de ouvir, ao longe, nitidamente, distinctamente, representando-se-me como um relampago vermelho ? meia treva, o uivar daquelle c?o, que, quando, em taes paginas, o Artista se d? a dialogar com o Coveiro a probabilidade de Manuel ser enterrado vivo, como toda a sua afflic??o pela far?a material dos tumulos--como que o chama ? realidade desse mundo que fica para alem do proprio pezadelo hystero-epiletico da sua tortura de superemotivo, e lhe queda, a dobrar, na alma, o timbre vivo e sinistro da hora horrivel que j? n?o conta, e, eu, de momento senti ali, perto delle, bater tragicamente, lugubremente, como um echo do seu sentido, ainda doloroso, embora j? distante, vago, erradio...
Onde?
Eis o que o coveiro, depois que o instei, se deu a contar-me, moendo as palavras, que, aliaz, lhe sahiam cavas e aos gorgol?es, como se me falasse ainda da adega ? qual, minutos antes, o f?ra arrancar.
Afinal pouco tem que ver a futura Casaforte dos ossos de Fialho,--no come?o da primeira rua do cemiterio, e a poucos passos do port?o, como do logar em que nos encontravamos.
Imagine-se uma especie de cofre em marmore branco, sem arestas, escrupulosamente polido e goivado ? volta, quasi sem ornatos, uma porta grossa cruzada da fecharia,--todo elle de um desenho facil, e, por sobre a cupula, ainda de pedra, dois gatos de bronze, dormindo abra?ados o velho somno dos symbolos! Eis tudo...
Este, repetimos, o mausoleu que lhe servir? em breve.
Porque provisoriamente, e a avaliar das informa??es que apontei, o Escriptor, descan?a ainda, de momento, ao fim do cemiterio, perto da ultima parede, num peda?o de ch?o mal tijolado e de emprestimo, em sepultura rasa...
A INDOLE DE FIALHO
N?o ? facil escrever de momento, e directamente, ?cerca dum artista como Fialho, tal o occultismo das suas predilec??es, como, mais propriamente, da obra que deixou, e tomaremos ainda como indice da sua singularissima neurilidade.
Assim, come?aremos por esclarecer que Fialho d'Almeida era filho de um homem da Beira e de uma mulher do Alemtejo, por melhor caracterizar algumas das suas extranhezas e contrastes, como o seu conflicto em materia de assumptos e realiza??es artisticas, que, antes de tudo, parecia advir-lhe do ser encontro de duas ra?as.
Da mesma maneira que cumpre ter presente a influencia da provincia em que nasceu, e que, na infancia, a edade impressionavel por excellencia, lhe deu aquelle amor pela tinta mais propria, ou seja a que os seus olhos receberam directamente da paizagem; como a sua grande intimidade com a natureza, com quem aprendeu a exprimir-se, e que t?o fundamente foi penetrada pelo seu genio.
De facto, nenhum elemento mais cioso da transmiss?o do caracter do que a terra. O que Fialho prova, ? saciedade, a par dos nossos maiores impressionistas.
Desenvolvemos noutro logar a indole da zona mais meridional do Alemtejo, onde se incluem Cuba e a pequena villa em que nasceu Fialho.
Resulta daquelle estudo um campo ethnico ? parte na geographia intima de Portugal regi?o embara?ada da heran?a arabe, que semelhantemente se v? na cultura, nos seus barros e azulejos, nas suas casas, como nas manifesta??es mais simples da vida vulgar dos seus habitantes.
De facto, ? sempre presente, na sua obra, aquelle primeiro campo de observa??es. Ahi ha a ver a intriga das passagens mais violentas das suas narrativas, as tintas das suas combina??es de painelista, os dialogos e personagens brutaes da sua tragedia mais popular; e, para alem, ainda, da paizagem, como das figuras, a raz?o culminante do seu genio de origem, em que migra o sonho luxurioso, mais que dum artista e dum povo,--duma civiliza??o perdida!
Importa insistir: a heran?a arabe se n?o vingou entre n?s, como em Hespanha, a ponto de que, ainda hoje, quasi tudo o que tem de grande se n?o foi della, nella se filia--nem por isso deixou de influir no genio de Portugal, onde logrou a sua invas?o pelo Sul, e, onde, repetimos, se conserva evidente.
? ali viva, manifesta em todas as coisas, e, sobretudo, nos homens, a quem as mesmas condi??es da terra naturalmente defenderam das fus?es com outras ra?as.
Ora, assentes estes factos, e tendo presente os ensinamentos que do seu conhecimento derivam, chegamos logicamente a entender melhor o caso, na apparencia extranho, das manifesta??es, por vezes distantes e t?o intensivamente artisticas do Sul, e mais, em especial, de certos capitulos da obra de Fialho d'Almeida.
Em verdade, eu n?o encontro para explicar-me o exuberante exquisito de algumas paginas do Artista, mais do que o segredo das colora??es, como dos labyrinthicos e caprichosos desenhos de certos e admiraveis exemplares da civiliza??o arabe na Peninsula, dentre os quaes me veem ? lembran?a, quasi sem o querer, os velhos monumentos da Andaluzia, tambem, porventura, da melhor intimidade de Fialho, e que o deviam ser de todos os artistas, muito particularmente dos de Portugal e Hespanha.
E, de facto, qual o artista, verdadeiramente curioso de civiliza??es mortas, que n?o percorreu ainda Alhambra,--a Alhambra monumental dos grandes Pa?os de Luz, redosos e filigranados, cujos marchetes e esmaltes se nos defrontam, mais do que como obra paciente e custosissima, quasi dolorosos ? nossa admira??o, pela mesma regularidade do seu maravilhoso, t?o distantemente extranho!
Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page