Read Ebook: O Romance da Rainha Mercedes by Pimentel Alberto
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Ebook has 167 lines and 16349 words, and 4 pages
De um beijo trocado entre o amor e a elegancia nasceu a ornamenta??o da camara nupcial do rei de Hespanha. O amor forneceu as lembran?as delicadas, as apaixonadas galanterias, os objectos symbolicos; a elegancia, que ? tanto maior artista quanto mais desleixada parece, distribuiu-os sorrindo, lan?ou-os como ao acaso, dispersou-os como se tratasse de espalhar uma nuvem de flores: brincando. D'esta allianca nasceu um idyllio em vez de uma camara, um palaciosinho feito de maravilhas dentro de um palacio feito de pedra; um ninho tecido de preciosidades para receber um par enamorado; dirieis que um poeta omnipotente conseguira realisar um sonho de riquesa e felicidade architectando aquelles aposentos com peda?os de crystal e raios de sol.
Na atmosphera, um suave conjuncto de aromas delicadissimos, subtis;--este perfume tenue mas penetrante que faz lembrar a respira??o das coisas bellas.
A luz, nitida, mas discreta, sem os tons petulantes com que ella invade as alcovas burguezas.
O que quer que fosse de branda indolencia, de deliciosa pregui?a na luz, nos moveis, nos perfumes. Quanto alli estava parecia viver, mas dormir. Era uma alvorada sem canticos, banhando n'uma serenidade narcotica a sua formosura.
F?ra, a contrastar com esta extranha placidez que esperava alli os noivos, a anciedade do publico, o rumor das pra?as, o rodar das equipagens, o estrepito das fanfarras, o tumultuar de uma cidade em festa.
? volta da formosa hespanhola, que ia ser rainha, as suas novas damas de honor, as duquezas de Bailen e de Ahumada e a condessa de Villapaterna acercando-lhe, como n'um sonho f?erico, todos esses brindes encantadores, todas essas maravilhas, que pareciam destinadas a uma noiva de ballada medi?vica.
A bazilica da Atocha aberta de par em par para receber os dois que se amavam. Deante do portico do templo, um arco de triumpho colossal, construido pelos invalidos, formado de canh?es, de armas, de tropheus de bandeiras conquistadas, um pensamento cavalheiresco a completar a festa do amor, que ia ser aben?oada por Deus.
Ide. Deus vos espera, noivos.
A BEN??O
A BEN??O
O cortejo nupcial era imponente, magestoso.
A grandesa das velhas c?rtes europ?as resuscitou n'aquelle dia sob o c?o da formosa Hespanha.
Era a carruagem do rei.
Excede tudo o que se possa imaginar esta velha carruagem real, que j? tem dois seculos de existencia, feita de acaj?, com ornatos de bronze dourado, encimada por um grupo de figuras mythologicas, que se enredemoinham aos abra?os n'uma lucta confusa, sob o peso da cor?a, que remata esse zimborio de um trabalho cellinesco. A caixa do trem arquea-se sobre laminas douradas, ? similhanca das carruagens de gala da c?rte portugueza. O interior, acolchoado de setim, cheio de paizagens, de figuras bordadas, emmoldurava o perfil do rei, que vestia a sua grande farda de general, com o tos?o de ouro sobreposto.
Mais tres carruagens, de um esplendor levantino, completavam o numero dos coches de gala: uma de ?bano e de lapis-lazuli marchetada de ouro; outra de marfim, e a ultima de crystal de rocha, uma especie de barquinha de vidro, que tremeluzia ao sol, como se se fosse movendo sobre uma onda azul do mar Jonio.
Uma escolta numerosa encerrava este cortejo phantastico, que passava deslumbrando como no fundo de um kaleidoscopio.
Tudo havia sido dirigido em t?o exacta conformidade com o programma, que a carruagem do rei chegou ? bazilica da Atocha ao mesmo tempo que a da princeza Mercedes.
Sob O arco de triumpho, o cardeal Benevides, patriarcha das Indias, acompanhado pelo nuncio apostolico e por quinze bispos, esperava os noivos.
Emp?s este coro nupcial que rodeiava Mercedes, este bello grupo de princezas, e de damas nobres como a duquesa de Sexto, que vestia de setim vermelho com rendas de Alen?on, e a condessa de Guaqui, que trajava vestido de setim branco guarnecido de pennas de abestruz e perolas finas, entraram no templo o senado, os deputados, e o corpo diplomatico.
Nos labios do rei desenhava-se um fino, um doce sorriso de felicidade, cuja express?o se p?de traduzir n'uma s? palavra: <
FESTAS
FESTAS
Na tarde d'esse dia, Luiz Godard, areonauta por hereditariedade, realisou no campo de M?ro, em frente do Palacio Real, a ascen??o de um enorme bal?o, que media setecentos metros, e que se elevou desdobrando as alegres c?res hespanholas no seu monstruoso bojo de seda.
Na tarde do dia seguinte, uma festa verdadeiramente hespanhola despert?ra o mais vivo enthusiasmo. Dezeseis mil espectadores affluiram ? tourada em que um grupo de mo?os fidalgos, e outro grupo dos mais famosos espadas de Hespanha, Frascuelo, Angelo Pastor, Gayetano Sanz, realisaram proezas de ousadia tauromachica.
No dia seguinte, concerto no theatro Apollo; no dia 27, revista militar em que trinta mil homens tomaram parte; depois... um diluvio de festas ruidosas, soberbas, e, no futuro--quem sabe?--talvez uma sombra, uma grande d?r, o reverso d'este quadro maravilhoso...
PRESAGIOS
PRESAGIOS
Por entre o resplendor das festas atravessa n?o raras vezes uma sombra fugitiva, que deixa no nosso espirito uma ligeira impress?o. ? a desgra?a que passa agitando subtilmente a sua grande aza negra; adivinhando-a, nasce em n?s o presentimento.
Por entre as enormes lampadas de ouro, que, no dia da ben??o nupcial, illuminavam a bazilica da Atocha, adejou essa terrivel ave presaga, e, demorando-se um momento sobre uma das capellas lateraes, chamou para aquelle ponto a atten??o de quantos alli tinham mais fina sensibilidade. Comprehendendo, estremeceram esses que viram isto. N'essa capella, um monumento de estylo antigo, um sarcophago de ferro com embutidos de ouro, guarda os restos mortaes do general Prim. Haviam escondido o tumulo para que elle n?o fizesse ouvir a sua voz sinistra por entre os canticos religiosos, e os hymnos da festa. Mas, postoque escondido, o tumulo fallava, e o presentimento chamou a atten??o para o que elle dizia. Era a ideia da morte, do invencivel poder que tudo derruba, que desfolha todas as grinaldas, que envenena todas as felicidades: adivinhava-se tudo isto. Involto em tape?arias, para que se n?o deixasse v?r, o gigante, se n?o podia bracejar, deixava presentir o seu vulto; de mais a mais aquelle tumulo era o do general Prim: poisavam sobre aquelle sarcophago dois vaticinios terriveis.
Quem sabe, ai! quem sabe! se Mercedes, a noiva ditosa, ao inclinar a fronte deante do patriarcha das Indias para ligar o seu destino ao do rei de Hespanha t?o mo?o e t?o namorado como ella, n?o relanceara involuntariamente o olhar para aquella capella que escondia um tumulo, e n?o sentira no cora??o a d?r lancinante de uma punhalada vibrada por m?o invisivel! Quem sabe at? se uma lagrima, uma lagrima crystallina e esquiva, n?o roci?ra por momentos a face da bella hespanhola, refrangendo a luz dos lampadarios! Se alguem viu essa lagrima, se o rei D. Affonso a surprehendeu, tomal-a-ia por uma d'essas perolas em que a alegria, quando ? profunda e immensa, se desentranha, porque a lagrima ? o verbo mudo de todas as grandes commo??es.
Nas vastas paragens habitadas pelos povos slavos, a guerra estrondejava; o echo longinquo da carnificina, da lucta tremenda em que dois grandes imperios rivaes procuram despeda?ar-se, rumorejava em todos os circulos de conversa??o, nas noticias palpitantes de todos os jornaes.
?s lagrimas da Italia juntava-se o sangue da Turquia.
A Europa estava agitada, receiosa, e n?o era este o scenario mais de geito para uma festa nupcial. Os representantes das poderosas c?rtes extrangeiras, que concorreram a Madrid, pareciam preoccupados: agitavam-se-lhes na mente os problemas do futuro.
Influencia do estado geral do mundo europeu, ou tibieza de animos apprehensivos, um facto occorrido em Madrid tom?ra um caracter presago para algumas pessoas. Dos fidalgos que se apresentaram a lidar toiros, um sahira mal-ferido da arena. Uma onda de sangue, jorrando do peito d'esse fidalgo toireiro, quiz parecer ruim vaticinio.
Entretanto, o rei de Hespanha dava-se por indemnisado de quanto havia soffrido em t?o verdes annos. Mercedes era, finalmente, sua. Ao mesmo passo julgava-se forte para soffrer no futuro. Tinha sobre o seu cora??o um escudo de a?o: era o amor da rainha.
Que pena que elle n?o podesse ser completamente feliz!
NOIVANDO
NOIVANDO
No mais profundo da floresta architectam as avesinhas o seu palacio de amor: afofam-n'o de plumas soltas, e de folhas verdes. Escondem-se assim das vistas curiosas, e celebram na profundesa do bosque o idyllio da sua felicidade.
Em deredor ouve-se ?s vezes um cantico, uma nota perdida; ? uma phrase, uma estrophe do poema do noivado. Por esse som, que o vento vai levando de arvore em arvore, comprehende-se a sublimidade do mysterio que se occulta dentro de quatro musgos entretecidos em abobada.
Tambem o palacio dos reis de Hespanha se convertera em ninho de amorosos segredos. Alli se escondia o par venturoso, alli vivia no remanso da sua felicidade
De dia em pensamentos que voavam, De noite em d?ces s?nhos que mentiam.
Mas, rodeiado das pris?es da c?rte, impedido, como todos os reis, de ser completamente livre, fech?ra no seu palacio as suas alegrias. N?o era rei sen?o por amar a Hespanha, que era tudo o que ainda lhe fazia lembrar do mundo. Mercedes, contemplava a sua cor?a de larangeiras, e n?o se lembrava da outra de rainha. Murillo, se resuscitasse, n?o saberia copiar aquella felicidade tranquilla.
De repente, os jornaes de Hespanha annunci?ram que a rainha Maria de las Mercedes havia enfermado gravemente.
AGONISANDO
AGONISANDO
Era entrado o estio. Os grandes calores iam queimar as ultimas fl?res que estrellavam os campos. Uma febre terr?vel prostr?ra effectivamente a formosa rainha de Hespanha. Nem as fl?res do throno escapavam ao ardor da saz?o.
A Europa ficou dolorosamente surprehendida, alvoro?ada com essa triste noticia. Quando a vida de uma noiva corre perigo, parece que sente a gente a oppress?o de um dia de inverno em plena manh? de primavera. E essa noiva era ao mesmo tempo uma rainha: tinha o triplice prestigio da sua posi??o, da sua formosura e da sua virtude. Pertenciam-lhe tres cor?as: uma de ouro, porque era rainha; outra de larangeiras, porque era noiva; a ultima de rosas, porque era bella. Profanar tres cor?as de uma s? vez, affigurava-se uma impiedade, um crime. A enfermidade que prostrou a rainha Mercedes pareceu desde logo um attentado da natureza contra a natureza, um facto horrivelmente extraordinario.
No dia 24 de junho, por?m, dia de festa para os povos da peninsula, a rainha sentiu-se mais alliviada por noite dentro. Supposeram os medicos v?r chegar um periodo de reac??o favoravel. Pareceu que a natureza havia comprehendido que n?o podiam os reis chorar nos dias assignalados ?s festas do povo.
Deslisou tranquilla a noite, e sobre a manh? p?de a rainha ser transportada, nos bra?os dos que mais amava, para outro leito. Rodeiavam a doente o rei, os duques de Montpensier, a princeza das Asturias, a infanta Christina, a marqueza de Santa Cruz. Parece que os doentes querem fugir ? morte mudando de leito. O rei comprehendeu o que se passava n'aquella alma gentil. Luctando pela vida, a rainha pensava mais nos outros do que em si. Queria salval-os, sabia qu?o fundo pungiria no cora??o da familia real a d?r de a v?r morrer.
A doen?a do corpo e do espirito sopit?ra a rainha, que adormeceu serenamente. Sobre o seu bello corpo adormecido pairou o sorriso de uma esperan?a. Ent?o alguns dos seus nobres enfermeiros foram descan?ar; ficaram outros, de atalaya ao leito, seguindo com a vista o menor movimento da physionomia, a menor altera??o do semblante. Eram o marido e a m?e. N?o podia haver no mundo mais dedicados enfermeiros.
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