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Read Ebook: Livro de Consolação: Romance by Castelo Branco Camilo

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Ebook has 1378 lines and 58284 words, and 28 pages

E, voltado contra mim, perguntou:

--O seu amigo disse que v. ? da provincia. ? minhoto?

--Tenho vivido no Porto--respond?.

--L? viv? tambem dois annos e tanto. Os suburbios s?o graciosos, quanto me podiam parecel-o atravez do fumo das batalhas. Sou um dos sete mil e quinhentos. Conservo recorda??es agradaveis de umas grandes arvores da quinta do Vanzeller. Verdade ? que as contemplei em posi??o molesta. Havia-se-me cravado uma bala na perna direita, e assim estive duas horas esperando a maca. Foi n'este espa?o de tempo que eu, confrangido, de d?res, admirei a serenidade das arvores, e ponderei a vantagem de ser vegetal, estranho ?s c?rtes de Lamego e ? constitui??o da monarchia. E a impassibilidade das carvalheiras aparando as balas no seu arnez de corti?a! Tudo ? grande e forte, excepto o homem! O homem... esse ? um mixto de odios, de angustias e vaidades, segundo assevera o nosso viajante Luiz da Silva...

Proseguiu o anci?o, entremeando de discretas jocosidades a deleitosa conversa??o, que durou duas fugitivas horas.

N?o se me abriu ensejo de pedir a Venceslau Taveira licen?a de o visitar, nem elle me offereceu a sua casa. Facil era de perceber que, se as visitas lhe eram agradaveis, a solid?o lhe era mais recreativa que as visitas.

Convidou-nos para o seu ch?, quando anoiteceu, e acompanhou-nos at? ? porta do quintal.

--Quem ? este homem?--perguntei ao meu amigo.

--A historia d'este homem ha de contar-t'a meu tio general que ? do tempo d'elle, e vem todos os annos da provincia de Traz-os-Montes visitar o seu companheiro de infancia. Os lances essenciaes poderei referir-t'os; mas as particularidades s? meu tio Pedro as sabe.

--Que posi??o social tem elle? Ouvi-te dar-lhe excellencia.

--A <> poderia significar que elle n?o tem alguma posi??o social; ainda assim, dou-lhe excellencia, porque o seu appellido representa familias antiquissimas da Beira Alta; al?m d'isso, ? do conselho de Sua Magestade, official maior de secretaria aposentado, gran-cruz da ordem de Christo, etc.

Desde Odivelas a Lisboa, me referiu Luiz da Silva as passagens capitaes da historia de Venceslau Taveira.

Alguns mezes depois, o general Pedro da Silva chegou a Lisboa, e, a rogos do sobrinho, contou-me circumstanciadamente successos que elle denominava os obscuros heroismos da mais honrada e excruciada alma.

E concluiu d'esta maneira:

--Se v. quer obrigar-me, escreva estes acontecimentos; mas n?o os enfeite com episodios de sua casa. Se a narrativa sahir verdadeira, poder? ser util. Deve v. fazer um livro dulcificante para alguns cora??es amargurados. P?de at? denominal-o, se quizer: LIVRO DE CONSOLA??O. Dou-lhe por cada lagrima, que fizer verter, um germen de boa ac??o, ou se quer de um bom pensamento. Por?m, se v. adulterar a tragica singeleza d'esta desgra?a com as inverosimilhan?as do genio francez, o seu livro ficar? sendo meramente uma novella. Escuso pedir-lhe--terminou o general--que empregue t?o s?mente a sua phantasia nos nomes dos personagens, em raz?o de estar ainda vivo o principal.

Historia infantil de todo o homem que sente....

Venceslau Taveira nasceu na comarca de Lamego em 1795. Como filho segundo de casa vinculada, foi destinado desde o ber?o a frade cruzio ou benedictino. Estudou humanidades em Coimbra, e entrou, portanto, a noviciar na casa capitular de Tib?es aos quinze annos.

Findo o anno de prova, o profitente interrogado manifestou que lhe faltava genio e f? para ser frade como cumpria.

Fr. Francisco de S. Luiz, ent?o conventual em Tib?es, e, mais tarde, bispo, ministro liberal, patriarcha e cardeal, sahiu em defeza do novi?o contra as violentas persuas?es dos monges escandalisados da impiedade de Venceslau.

N?o ter f?! Era a primeira vez que um novi?o ous?ra dizer que n?o tinha f?! Que elle n?o tivesse virtudes, v?; que muito frade se salvou sem ellas, gra?as ao habito que faz o monge e ? contric??o final que faz o santo; mas n?o ter f?!...

Sem impedimento d'estas e outras raz?es dos frades escandalisados, argumentava o sabio benedictino que era desprimor notavel para a religi?o o acorrentarem-lhe ao altar os seus sacerdotes; que o descredito das ordens monasticas havia sido motivado pelo vicioso proceder dos frades constrangidos; e que, finalmente, ninguem esperasse que a violencia abrisse ? luz da f? cora??es fechados e escurecidos pela duvida.

Com t?o v?lido protector, o novi?o despiu o habito e foi para casa. Recebeu-o a m?e com amorosa indulgencia; mas o pae, affrontado da insolita rebeldia, apertou-o no duro dilemma: ser frade, ou, quando n?o, ir grangear sua vida onde lhe bem quadrasse.

Baldados os rogos e piedades da m?e, j? ao marido para que perdoasse, j? ao filho para que obedecesse vestindo o habito, Venceslau, com algumas moedas liberalisadas pela commisera??o maternal, foi caminho de Lisboa onde n?o tinha parentes nem amigos.

Principiava o anno 1811.

O mancebo chegou a Santarem no dia em que o general Massena alli aquartellava a sua divis?o. O reboli?o da cidade desbordando de tropa, o espectaculo offuscante de um exercito embriagado de victorias, aquellas magestosas figuras dos generaes do imperio alvoro?aram o animo do rapaz cuja imagina??o verdejava as epicas fantasmagorias dos dezesseis annos.

Que farte ouvira elle em Tib?es execrar Napole?o, Massena, Soult, Junot e os outros d'aquella funesta constella??o. O seu entendimento queria duvidar da justi?a das accusa??es; mas o patriotismo insinuava-lhe o dever de odiar francezes, salvante Rousseau, cujas obras elle pod?ra l?r clandestinamente, subtrahindo-as da gav?ta defeza da livraria de Tib?es, onde talvez as recadasse com prudente cautela o esclarecido fr. Francisco de S. Luiz.

O leitor vae recordar a sabida passagem que, no espirito do mo?o enthusiasta, emparceirava o general francez com Themistocles ou Paulo Emilio.

Quando os francezes retiravam de Alemquer, certa familia de notoria fidalguia, receando insultos da plebe, acompanhou o exercito invasor com uma escolta de dois drag?es. Ora um d'estes indignos guardas, ageitada a occasi?o, e vencido do impeto do sangue e dos conselhos do demonio, maculou mais ou menos--mas ? de cr?r que fosse mais--a pudicicia de uma das damas confiadas ? sua vigilancia.

Eis pois um drag?o indigno de aparelhar com o outro que, no jardim das Hesperides, guardava o v?lo de ouro, de certo com mais peso e quilates, mas com muito menos direitos ? nossa consterna??o.

E succedeu que a dama queixosa, posto que o infando desastre houvesse sido secreto, preferisse ser honrada a parecel-o. Assim pois, logo que chegou a Santarem, D. Lucrecia expoz a Massena o affrontamento que lhe fizera o drag?o. Ordenou para logo o general que o criminoso entrasse em conselho de guerra, e t?o summario correu o processo que, no lapso de meia hora, foi o carnalissimo r?o interrogado, sentenciado, confessado e espingardeado!

E como quer que alguem intercedesse em favor do comdemnado exorando menos rigorosa pena, o general respondeu: <>.

Tal foi o caso de disciplina que obteve para as aguias de Austerlitz um acerrimo partidario.

Apresentou-se Venceslau Taveira ao marquez de Alorna, um dos generaes portuguezes que seguiram deslumbrados o metheoro da Corsega, quando as c?res ardentes j? se ?am esmaiando ao visinhar-se do c?o de Waterloo.

O marquez, illustrado e dadivoso, agasalhou o foragido novi?o com tanta cortezia como caridade, sentando-o ? sua mesa e provendo-o das coisas que lhe escasseavam, na crise em que a fome apalpava os portuguezes menos protegidos.

Comprazia-se o provinciano em convivencia d'alguns fidalgos, commensaes de Alorna, taes como o marquez de Loul?, o conde de S. Miguel e D. Luiz de Athaide. Este ultimo foi grande parte no precoce rancor de Venceslau aos governos absolutos.

<<... N?o posso deixar de mencionar outro homem notavel que alli encontrei, e que, descendente da mais alta fidalguia da nossa terra, era um tristissimo exemplo da degrada??o a que p?de chegar a especie humana, decahida do explendor da grandeza e mergulhada no loda?al da miseria e despreso. Foi D. Luiz de Athaide filho e neto d'essas familias desgra?adas a quem o inexoravel grande marquez de Pombal sacrificou sobre o horroroso altar do poder absoluto e de quem at? pretendeu riscar os nomes da superficie da terra... Em verdade, era digno de ser observado por quem pod?sse bem avaliar o que s?o e podem ser os destinos do animal chamado homem... Quem o via, e n?o sabia quem era, s? o podia ter por um sordido e baixo m??o de cavallari?a. Na sua figura e no seu trage trazia todas as insignias das maldi??es humanas, e nas suas palavras n?o havia sen?o rancor e odio, e esse rancor e odio t?o profundos e inveterados, quantos eram os annos desde que poude conhecer as suas mizerias. A quem lhe fallasse na casa de Bragan?a, respondia com rugidos de le?o; parecia que lhe saltavam os olhos pela cara f?ra estimulados pela raiva, e s? socegava depois que desafogava o cora??o ulcerado com impreca??es horriveis. Para elle s? Napole?o era o rei legitimo de Portugal; e tal era a affei??o que lhe tinha que, havendo, n?o sei porque artes, ganhado uma grande por??o de dinheiro a foi entregar a Massena assim que entrou em Portugal. Este lh'a acceitou e agradeceu, declarando-lhe ao mesmo tempo que esta lhe seria restituida em Paris, se para l? fosse...>>

Apezar d'esta aprecia??o indicativa de escriptor e espirito menos de ordinarios, e incapazes de al?arem-se at? onde a desgra?a ergue pelos cabellos as suas preas, D. Luiz de Athaide, no conceito de Venceslau, incutia a um tempo compaix?o, respeito e assombro. Aterrava e commovia ouvil-o vociferar contra a ra?a de D. Jos? I, e de repente levar as m?os aos olhos afogados em lagrimas, solu?ando o nome de seu pae. Se alguem lhe lembrava que elle era proximo parente da familia real, e portanto devia cohibir-se de insultal-a no mais sensivel da honra, exasperava-se a termos de repellar-se por n?o poder inventar maneira de denegrir em si proprio as gotas de sangue real que lhe deshonravam as veias.

Escreve elle: <<... Mas como casou! Consta-me tambem que alli em Paris vascolej?ra as ultimas fezes da sociedade para encontrar uma mulher que fosse digna d'elle e que a ach?ra. Reduzido na sua terra ? infima sorte de um paria na India, quiz, no seu mesmo aviltamento, v?r se podia tambem aviltar, como elle dizia, algumas gotas de sangue que lhe circulassem no corpo, e fossem d'essas que animavam a familia real portugueza.>>

Homem de t?o singular e descommunal condi??o tinha direito a ser estudado e desenhado por quem tivesse vista d'alma que alcan?asse o enorme desgra?ado no fundo da sua voragem. Dos seus coevos e camaradas nenhum deu tento d'esse extraordinario martyr sen?o o ex-frade Jos? Liberato, que nunca p?de desfazer-se de tres partes de m?o frade com que fugiu aleijado do convento. O neto do brioso Tavora, o representante da opulenta familia, cujos bens haviam sido confiscados para a casa reinante, ou para a do valido que se pascia nas lagrimas, no sangue e no espolio dos degolados em Belem, emfim, aquella sublime e rancorosa desespera??o de D. Luiz, que dava o ouro ganhado em azares do jogo para derruir o throno, e trajava andrajos para que assim o vissem roubado nas ultimas mealhas de seu pae--tal homem assim maltrapido e crucificado no seu opprobio, figurou-se aos olhos de Jos? Liberato o compendio <>!

Com interesse de respeitoso compungimento o via Venceslau Taveira, e o escutava nas apostrophes iracundas contra a dynastia de Bragan?a. J? decrepito, o solitario da charneca de Odivelas, recordava o neto dos Athouguias, e dizia que se a Fran?a houvesse tido um homem assim recaldeado em fraguas de tamanhas angustias--um t?o extravagante complexo de soberba e aviltamento, de saudade maviosa e sevos odios--os mais grados litteratos o exal?ariam diante do mundo, tornando-o interessante como historia, como philosophia, como moral, e at? o poeta se n?o pejaria de ir procurar nas cavallari?as de Massena esse neto de reis portuguezes, e vestil-o dos esplendores da poesia tragica, ao mesmo passo que o seu real parente, o principe D. Jo?o de Bragan?a, apenas vingaria ser dignamente cantado nas epop?as bordalengas de Jos? Daniel.

Affei??o de outra tempera, como de eguaes e de mancebos em alvorada de esperan?as, ligou Venceslau Taveira a um official de infanteria do quartel-general de Pamplona.

O c?lestes concerts de joie et de douleur!

Era um rapaz de vinte e dous annos, chamado Eduardo Pimenta, natural de Braga.

Este mo?o levava uma vida tanto em com??o j? cortada de profundos golpes; e, por amor d'isso, como as suas d?res n?o podiam ser expia??o de maus actos, a gente de cora??o queria suavisar-lh'as, linimentando-lh'as com o balsamo da amizade.

Bosquejemos a historia d'esta mal estreada existencia.

D. Antonia de Portugal, famigerada formosura n'aquelle tempo, viera de Lisboa a visitar irm?os, que tinha no Porto, alliados por casamento nas duas casas de mais gothica estirpe. Affei?oara-se aquella dama a um alferes, sem discriminar os distantissimos pontos de partida em que o Creador pozera o seu primeiro av? do av? de Eduardo Pimenta:--erro talvez devido ? insufficiente leitura que a menina tinha de Moys?s.

Era orph? D. Antonia; mas a tutela de um tio que por vezes exercera o ent?o poderoso cargo de ministro de Estado, pesava-lhe mais oppressiva e inflexivel que o poder paterno. Assim pois, t?o depressa raspou nos ouvidos do fidalgo o indecoroso affecto da sobrinha, que logo Eduardo Pimenta foi chamado ? capital e transferido ao Brazil em servi?o militar. Inquebrantavel em seu amor, D. Antonia incutiu no peito do desterrado a flamma da sua coragem, accendendo-lhe esperan?as temerarias e perigosas.

Os parentes d'ella tomaram-se de espanto e ira, ao saberem que o alferes desert?ra do seu regimento, desembarc?ra em Lisboa, e ajoelh?ra aos p?s do principe regente solicitando e impetrando licen?a para casar-se com D. Antonia de Portugal.

O consentimento, por?m, do bondoso principe n?o tolheu que o alferes, acossado pela persegui??o de sicarios, se evadisse da c?rte, refugiando-se nos arrabaldes de Braga, d'onde em v?o implorou por media??o de amigos a malograda protec??o do principe.

No entanto, a pertinaz menina, cansada de reagir ? press?o dos parentes, acolheu-se ao mosteiro de S. Bento da Ave Maria, no Porto, onde tinha uma tia professa; mas d'ahi ainda o bra?o rijo do tio ministro, mediante o chanceller das justi?as, a foi arrancar, allegando que a reclusa, escrevendo e recebendo cartas, gosava liberdades deshonestas que em sua casa lhe eram prohibidas.

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