Read Ebook: Memorias Posthumas de Braz Cubas by Machado De Assis
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a, que era a sua voca??o natural; e em prova de que tal era a sua voca??o, recitou-me logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um phenomeno: os ademanes que elle usava eram taes, que uma vez me fizeram rir; mas o capit?o, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo, que n?o viu nem ouviu nada.
Os dias passavam, e as aguas, e os versos, e com elles ia tambem passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do almo?o, disse-me o capit?o que a enferma talvez n?o chegasse ao fim da semana.
--J?! exclamei.
--Passou muito mal a noite.
Fui vel-a; achei-a, na verdade, quasi moribunda, mas fallando ainda de descan?ar em Lisboa alguns dias, antes de ir commigo a Coimbra, porque era seu proposito levar-me ? Universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer na costado do navio, e tratei de o consolar; elle agradeceu-me, relatou-me a historia dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedica??o da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-m'os. Neste ponto vieram buscal-o da parte della; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram crueis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao expectaculo, tinha-lhe repugnancia. Meia hora depois encontrei o capit?o, sentado n'um m?lho de cabos, com a cabe?a nas m?os; disse-lhe alguma cousa de conforto.
--Morreu como uma santa, respondeu elle; e, para que estas palavras n?o pudessem ser levadas ? conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabe?a, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo.--Vamos, continuou, entreguemol-a ? cova que nunca mais se abre.
Effectivamente, poucas horas depois, era o cadaver lan?ado ao mar, com as ceremonias do costume. A tristeza murch?ra todos os rostos; o do viuvo trazia a express?o de um cabe?o rijamente lascado pelo raio. Grande silencio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo, fechou-se,--uma leve ruga,--e a galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, ? popa, com os olhos naquelle ponto incerto do mar em que ficava um de n?s... Fui dalli ter com o capit?o, para distrahil-o.
--Obrigado, disse-me elle comprehendendo a inten??o; creia que nunca me esquecerei dos seus bons servi?os. Deus ? que lh'os ha de pagar. Pobre Leocadia! tu te lembrar?s de n?s no ceu.
Enxugou com a manga uma lagrima importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era a paix?o delle. Fallei-lhe dos versos, que me lera, e offereci-me para imprimil-os. Os olhos do capit?o animaram-se um pouco.--Talvez aceite, disse elle; mas n?o sei... s?o bem frouxos versos. Jurei-lhe que n?o; pedi que os reunisse e me d?sse antes do desembarque.
--Pobre Leocadia! murmurou elle sem responder ao pedido. Um cadaver... o mar... o ceu... o navio...
No dia seguinte veiu ler-me um epicedio composto de fresco, em que estavam memoradas as circumstancias da morte e da sepultura da mulher; leu-m'o com a voz commovida dev?ras, e a m?o tremula; no fim perguntou-me se os versos eram dignos do thesouro que perdera.
--S?o, disse eu.
--N?o haver? estro, ponderou elle, no fim de um instante, mas ninguem me negar? sentimento, se n?o ? que o proprio sentimento prejudicou a perfei??o....
--N?o me parece; acho os versos perfeitos.
--Sim, eu creio que... Versos de marujo.
--De marujo poeta.
Elle levantou os hombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a composi??o, mas j? ent?o sem tremuras, accentuando as inten??es litterarias, dando relevo ?s imagens e melodia aos versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada, eu disse-lhe que sim; elle apertou-me muito a m?o e predisse-me um grande futuro.
CAPITULO XX
Bacharelo-me
Um grande futuro! Em quanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte mysterioso e vago. Uma id?a expellia outra, a ambi??o desmontava Marcella. Um grande futuro? Talvez naturalista, litterato, archeologo, banqueiro, politico, ou at? bispo,--bispo que fosse,--uma vez que fosse um cargo, uma preeminencia, uma grande reputa??o, uma posi??o superior. A ambi??o, dado que fosse aguia, quebrou nessa occasi?o o ovo, e desvendou a pupilla fulva e penetrante. Adeus, amores; adeus, Marcella; dias de delirio, joias sem pre?o, vida sem regimen, adeus. C? me vou ?s fadigas e ? gloria; deixo-vos com as calcinhas da primeira edade.
E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas materias arduas, e n?o sei se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o gr?u de bacharel; deram-m'o com a solemnidade do estylo, ap?s os annos da lei; uma bella festa que me encheu de orgulho e de saudades,--principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de foli?o; era um academico estroina, superficial, tumultuario e petulante, dado ?s aventuras, fazendo romantismo pratico e liberalismo theorico, vivendo na pura f? dos olhos pretos e das constitui??es escriptas. No dia em que a Universidade me attestou, em pergaminho, uma sciencia que eu estava longe de trazer arraigada no cerebro, confesso que me achei de de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por alli f?ra assaz desconsolado, mas sentindo j? uns impetos, uma curiosidade, um desejo de acotovellar os outros, de influir, de gozar, de viver,--de prolongar a Universidade pela vida adeante...
O almocreve
Vae ent?o, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, elle deu dous corcovos, depois mais tres, emfim mais um, que me sacudiu f?ra da sella, e com tal desastre, que o p? esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas j? ent?o, espantado, disparou pela estrada f?ra. Digo mal: tentou disparar, e effectivamente deu dous saltos, mas um almocreve, que alli estava, acudiu atempo de lhe pegar na redea e detel-o, n?o sem esfor?o nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e puz-me de p?.
--Olhe do que vosmec? escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o jumento corre por alli f?ra, contundia-me dev?ras, e n?o sei se a morte n?o estaria no fim do desastre; cabe?a partida, uma congest?o, qualquer transtorno c? dentro; e l? se me ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o cora??o. Bom almocreve! emquanto eu tornava ? consciencia de mim mesmo, elle cuidava de concertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lho tres moedas de ouro das cinco que trazia commigo; n?o porque tal fosse o pre?o da minha vida,--essa era inestimavel; mas por que era uma recompensa digna da dedica??o com que elle me salvou. Est? dito, dou-lhe as tres moedas.
--Prompto, disse elle apresentando-me a redea da cavalgadura.
--Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda n?o estou em mim...
--Ora qual!
--Pois n?o ? certo que ia morrendo?
--Se o jumento corre por ahi f?ra, ? possivel; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmec? que n?o aconteceu nada.
Fui aos alforges, tirei um collete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se n?o era excessiva a gratifica??o, se n?o bastavam duas moedas. Talvez uma. Com effeito, uma moeda era bastante para lhe dar estreme??es de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir ? luz do sol; n?o a viu o almocreve, por que eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a fallar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juizo, que o <
--Ol?! exclamei.
--Queira vosmec? perdoar, mas o diabo do bicho est? a olhar para a gente com tanta gra?a...
Ri-me, hesitei, metti-lhe na m?o um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do effeito da pratinha. Mas a algumas bra?as de distancia, olhei para traz, o almocreve fazia-me grandes cortezias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez de mais. Metti os dedos no bolso do collete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vintens que eu devera ter dado ao almocreve, em logar do cruzado em prata. Porque, emfim, elle n?o levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos habitos do officio; accresce que a circumstancia de estar, n?o mais adeante nem mais atraz, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituil-o simples instrumento de Providencia; e de um ou de outro modo, o merito do acto era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflex?o, chamei-me prodigo, lancei o cruzado ? conta das minhas dissipa??es antigas; tive tive remorsos.
Volta ao Rio
Jumento de uma figa, cortaste-me o fio ?s reflex?es. J? agora n?o digo o que pensei dalli at? Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na peninsula e em outros logares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia remo?ar. N?o, n?o direi que assisti ?s alvoradas do romantismo, que tambem eu fui fazer poesia effectiva no rega?o da Italia; n?o direi cousa nenhuma. Teria de escrever um diario de viagem e n?o umas memorias, como estas s?o, nas quaes s? entra a substancia da vida.
Ao cabo de alguns annos de peregrina??o attendi ?s supplicas de meu pae:--<
Triste, mas curto
Vim; e n?o nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensa??o nova. N?o era effeito da minha patria politica; era-o do logar da infancia, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as cousas e scenas da meninice, buriladas na memoria. Nada menos que uma renascen?a. O espirito, como um passaro, n?o se lhe deu da corrente dos annos, arrepiou o v?o na direc??o da fonte original, e foi beber da agua fresca e pura, ainda n?o mesclada do enxurro da vida.
Reparando bem, ha ahi um logar-commum. Outro logar-commum, tristemente commum, foi a consterna??o da familia. Meu pae abra?ou-me com lagrimas.--Tua m?e n?o p?de viver, disse-me elle. Com effeito, n?o era j? o rheumatismo que a matava, era um cancro no estomago. A infeliz padecia de um modo cr?, porque o cancro ? indifferente ?s virtudes do sujeito; quando r?e, r?e; roer ? o seu officio. Minha irm? Sabina, j? ent?o casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre mo?a! dormia tres horas por noite, nada mais. O proprio tio Jo?o estava abatido e triste. D. Eusebia e algumas outras senhoras l? estavam tambem, n?o menos tristes e n?o menos dedicadas.
--Meu filho!
A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso allumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a aza eterna. Era menos um rosto do que uma caveira; a belleza pass?ra, como um dia brilhante; restavam os ossos, que n?o emmagrecem nunca. Mal poderia conhecel-a; havia oito ou nove annos que nos n?o viamos. Ajoelhado, ao p? da cama, com as m?os della entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar fallar, porque cada palavra seria um solu?o, e n?s temiamos avisal-a do fim. V?o temor! Ella sabia que estava prestes a acabar; disse-m'o; verificamol-o na seguinte manh?.
Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefac??o. Era a primeira vez que eu via morrer alguem. Conhecia a morte de outiva; quando muito, tinha-a visto j? petrificada no rosto de algum cadaver, que acompanhei ao cemiterio, ou trazia-lhe a id?a embrulhada nas amplifica??es de rhetorica dos professores de cousas antigas,--a morte aleivosa de Cesar, a austera de Socrates, a orgulhosa de Cat?o. Mas esse duello do ser e do n?o ser, a morte em ac??o, dolorida, contrahida, convulsa, sem apparelho politico ou philosophico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. N?o chorei; lembra-me que n?o chorei durante o expectaculo; tinha os olhos estupidos, a garganta presa, a consci?ncia boquiaberta. Que? uma creatura t?o docil, t?o meiga, t?o santa, que nunca jamais fizera verter uma lagrima de desgosto, m?e carinhosa, esposa immaculada, era for?a que morresse assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doen?a sem misericordia? Confesso que tudo aquillo me pareceu obscuro, incongruente, insano...
Triste capitulo; passemos a outro mais alegre.
Curto, mas alegro
Fiquei prostrado. E comtudo era eu, nesse tempo, um fiel compendio de trivialidade e presump??o. Jamais o problema da vida e da morte me opprimira o cerebro; nunca at? esse dia me debru?ara sobre o abysmo do Inexplicavel; faltava-me o essencial, que ? o estimulo, a vertigem...
Para lhes dizer a verdade toda, eu reflectia as opini?es de um cabelleireiro, que achei em Modena, o qual se distinguia por n?o as ter absolutamente. Era a flor dois cabelleireiros; por mais demorada que fosse a opera??o do toucado, n?o enfadava nunca; elle intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... E n?o tinha outra philosophia. Nem eu. N?o digo que a Universidade me n?o tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe s? as formulas, o vocabulario, o esqueleto. Tratei-a, como tratei o latim: embolsei tres versos de Virgilio, dous de Horacio, uma duzia de locu??es moraes e politicas, para as despezas da conversa??o. Tratei-os como tratei a historia e a jurisprudencia. Colhi de todas as cousas a phraseologia, a casca, a ornamenta??o, que eram para o meu espirito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, s?o as conchas do mar e os dentes de pessoa morta.
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e real?o a minha mediocridade; advirta que a franqueza ? a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opini?o, o contraste dos interesses, a luta das cobi?as obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfar?ar os rasg?es e os remendos, a n?o estender ao mundo as revela??es que faz ? consci?ncia; e o melhor da obriga??o ? quando, ? for?a de emba?ar os outros, emba?a-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que ? uma sensa??o penosa, e a hypocrisia, que ? um vicio hediondo. Mas, na morte, que differen?a! que desabafo! que liberdade! Como a gente p?de sacudir f?ra a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desaffeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em summa, j? n?o ha visinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem extranhos; n?o ha plat?a. O olhar da opini?o, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territorio da morte; n?o digo que elle se n?o estenda para c?, e nos n?o examine e julgue; mas a n?s ? que n?o se nos d? do exame nem do julgamento. Senhores vivos, n?o ha nada t?o incommensuravel como o desdem dos finados.
Na Tijuca
Ui! l? me ia a penna a escorregar para o emphatico. Sejamos simples, como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas depois da morte de minha m?e.
Renunciei tudo; tinha o espirito attonito. Creio que por ent?o ? que come?ou a desabotoar em mim a hypocondria, essa flor amarella, solitaria e morbida, de um cheiro inebriante e subtil.--<
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