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Read Ebook: Memorias Posthumas de Braz Cubas by Machado De Assis

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Ebook has 1002 lines and 52797 words, and 21 pages

Renunciei tudo; tinha o espirito attonito. Creio que por ent?o ? que come?ou a desabotoar em mim a hypocondria, essa flor amarella, solitaria e morbida, de um cheiro inebriante e subtil.--<>--Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atten??o, confesso que senti em mim um echo, um echo delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas m?os, e o espirito ainda mais cabisbaixo do que a figura,--ou jurur?, como dizemos das gallinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensa??o unica, uma cousa a que poderia chamar volupia do aborrecimento. Volupia do aborrecimento: decora esta express?o, leitor; guarda-a, examina-a, e se n?o chegares a entendel-a, podes concluir que ignoras uma das sensa??es mais subtis desse mundo e daquelle tempo.

?s vezes ca?ava, outras dormia, outras lia,--lia muito,--outras emfim n?o fazia nada; deixava-me atoar de id?a em id?a, de imagina??o em imagina??o, como uma borboleta vadia ou faminta; e as horas iam pingando uma a uma, o sol cahia, as sombras da noite velavam a montanha e a cidade. Ninguem me visitava; recommendei expressamente que me deixassem s?. Um dia, dous dias, tres dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca f?ra e restituir-me ao bulicio. Com effeito, ao cabo de sete dias, estava farto da solid?o; a dor applac?ra; o espirito j? se n?o contentava com o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do ceu. Reagia a mocidade, era preciso viver. Metti no bah? o problema da vida e da morte, os hypocondriacos do poeta, as camisas, as medita??es, as gravatas, e ia fechal-o, quando o moleque Prudencio me disse que uma pessoa do meu conhecimento se mud?ra na vespera para uma casa roxa, situada a duzentos passos da nossa.

--Quem?

--Nhonh? talvez n?o se lembre mais de D. Eusebia...

--Lembra-me... ? ella?

--Ella e a filha. Vieram hontem de manh?.

Occorreu-me logo o episodio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os acontecimentos tinham-me dado raz?o. Na verdade, f?ra impossivel evitar as rela??es intimas do Villa?a com a irm? do sargento-m?r; antes mesmo do meu embarque, j? se boquejava mysteriosamente no nascimento de uma menina. Meu tio Jo?o mandou-me dizer depois que o Villa?a, ao morrer, deixara um bom legado a D. Eusebia, cousa que deu muito que fallar em todo o bairro. O proprio tio Jo?o, guloso de escandalos, n?o tratou de outro assumpto na carta, ali?s de muitas folhas. Tinham-me dado raz?o os acontecimentos. Ainda por?m que m'a n?o dessem, 1814 l? ia longe, e, com elle, a travessura, e o Villa?a, e o beijo da moita; finalmente, nenhumas rela??es estreitas existiam entre mim e ella. Fiz commigo essa reflex?o e acabei de fechar o bah?.

--Nhonh? n?o vae visitar sinh? D. Eusebia? perguntou-me o Prudencio. Foi ella quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.

Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por occasi?o da morte e do enterro; ignorava por?m que ella houvesse prestado a minha m?e esse derradeiro obsequio. A pondera??o do moleque era razoavel; eu devia-lhe uma visita; determinei fazel-a immediatamente, e descer.

O autor hesita

S?bito ou?o uma voz:--Ol?, meu rapaz, isto n?o ? vida! Era meu pae, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no bah? e recebi-o sem alvoro?o. Elle esteve alguns instantes de p?, a olhar para mim; depois estendeu-me a m?o com um gesto commovido:

--Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.

--J? me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a m?o.

N?o tinha almo?ado; almo??mos juntos. Nenhum de n?s alludiu ao triste motivo da minha reclus?o. Uma s? vez fall?mos nisso, de passagem, quando meu pae fez recahir a conversa na Regencia; foi ent?o que alludiu ? carta de pezames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta comsigo, j? bastante amarrotada, talvez por havel-a lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-m'a duas vezes.

--J? lhe fui agradecer este signal de considera??o, concluiu meu pae, e acho que deves ir tambem...

--Eu?

--Tu; ? um homem notavel, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago commigo uma id?a, um projecto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projectos, um logar de deputado e um casamento.

Meu pae disse isto com pausa, e n?o no mesmo tom, mas dando ?s palavras um geito e disposi??o, cujo fim era caval-as mais profundamente no meu espirito. A proposta, por?m, desdizia tanto das minhas sensa??es ultimas, que eu cheguei a n?o entendel-a bem. Meu pae n?o fraqueou e repetiu-a; encareceu o logar e a noiva.

--Aceitas?

--N?o entendo de politica, disse eu depois de um instante; quanto ? noiva... deixe-me viver como um urso, que sou.

--Mas os ursos casam-se, replicou elle.

--Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior.

Riu-se meu pae, e depois de rir, tornou a fallar serio. Era-me necessaria a carreira politica, dizia elle, por vinte e tantas raz?es, que deduziu com singular volubilidade, illustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto ? noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedil-a ao pae, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascina??o, depois a persuas?o, depois a intima??o; eu n?o dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de p?o, a sorrir ou a reflectir; e, para tudo dizer, nem docil nem rebelde ? proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posi??o politica eram bens dignos de apre?o; outra dizia que n?o; e a morte de minha m?e me apparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das affei??es, da familia...

--N?o vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pae. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as syllabas com o dedo.

Bebeu o ultimo gole de caf?; repotreou-se, e entrou a fallar de tudo, do senado, da camara, da Regencia, da restaura??o, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matta-cavallos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente n'um peda?o de papel, com uma ponta de lapis; tra?ava uma palavra, uma phrase, um verso, um nariz, um triangulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim:

arma virumque cano A Arma virumque cano arma virumque cano arma virumque arma virumque cano virumque

Vir Virgilio Virgilio Virgilio Virgilio Virgilio

Meu pae, um pouco despeitado com aquella indifferen?a, ergueu-se, veiu a mim, lan?ou os olhos ao papel...

--Virgilio! exclamou. ?s tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgilia.

Virgilia?

Virgilia? Mas ent?o era a mesma senhora que alguns annos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus ultimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais intimas sensa??es. Naquelle tempo contava apenas uns quinze ou dezeseis annos, e era talvez a mais atrevida creatura da nossa ra?a, e, com certeza, a mais voluntariosa. N?o digo que j? lhe coubesse a primazia da belleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto n?o ? romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos ?s sardas e espinhas; mas tambem n?o digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha; n?o. Era bonita, fresca, sahia das m?os da natureza, cheia daquelle feiti?o, precario e eterno, que o individuo passa a outro individuo, para os fins secretos da crea??o. Era isto Virgilia, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns impetos mysteriosos; muita pregui?a e alguma devo??o,--devo??o, ou talvez medo; creio que medo.

Ahi tem o leitor, em poucas linhas, o retrato physico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquillo com dezeseis annos. Tu que me l?s, se ainda fores viva, quando estas paginas vierem ? luz,--tu que me l?s, Virgilia amada, n?o reparas na differen?a entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Cr? que era t?o sincero ent?o como agora; a morte n?o me tornou rabujento, nem injusto.

--Mas, dir?s tu, se voc? n?o guardou na retina da memoria a imagem do que fui, como ? que p?de assim discernir a verdade daquelle tempo, e exprimil-a depois de tantos annos?

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas ? isso mesmo que nos faz senhores da terra, ? esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impress?es e a vaidade dos nossos affectos. Deixa l? dizer o Pascal que o homem ? um cani?o pensante. N?o; ? uma errata pensante, isso sim. Cada esta??o da vida ? uma edi??o, que corrige a anterior, e que ser? corrigida tambem, at? a edi??o definitiva, que o editor d? de gra?a aos vermes.

Contanto que...

--Virgilia? interrompi eu.

--Sim, senhor; ? o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem azas. Imagina uma mo?a assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra...

--Que Dutra?

--O Conselheiro Dutra; n?o conheces; uma influencia politica. Vamos l?; aceitas?

N?o respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava disposto a examinar as duas cousas, a candidatura e o casamento, comtanto que...

--Comtanto que?

--Comtanto que n?o fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso ser separadamente homem casado ou homem publico...

--Todo o homem publico deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pae. Mas seja como queres; estou por tudo; fico certo de que a vista far? f?. Demais, a noiva e o casamento s?o a mesma cousa... isto ?, n?o... saber?s depois... V?; aceito a dila??o, comtanto que...

--Comtanto que?.. interrompi eu imitando-lhe a voz.

--Ah! brejeiro! Comtanto que n?o te deixes ficar ahi inutil, obscuro, e triste; n?o gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te n?o ver brilhar, como deves, e te convem, e a todos n?s; ? preciso continuar o nosso nome, continual-o e illustral-o ainda mais. Olha, estou com sessenta annos, mas se fosse necess?rio come?ar vida nova, come?ava-a sem hesitar um s? minuto. Teme a obscuridade, Braz; foge do que ? infimo. Olha que os homens valem por differentes modos, e que o mais seguro de todos ? valer pela opini?o dos outros homens. N?o estragues as vantagens da tua posi??o, os teus meios...

E foi por deante o magico, a agitar deante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hypocondria recolheu-se ao bot?o para deixar a outra flor menos amarella, e nada morbida,--o amor da nomeada, o emplasto Braz Cubas.

A visita

Vencera meu pae; dispuz-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgilia e a camara dos deputados.--As duas Virgilias, disse elle n'um assomo de ternura politica. Aceitei-os; meu pae deu-me dous fortes abra?os. Era o seu proprio sangue que elle, emfim, reconhecia. Rigorosamente, o filho delle acabava de desembarcar naquelle instante, de rodaque de linho e m?os nos bolsos. Havia ent?o nos olhos de meu pae alguma cousa do velho Cid; era a alma que colligira n'uma s? flamma todas as ultimas scentelhas.

--Desces commigo?

--Des?o amanh?. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusebia...

Meu pae torceu o nariz, mas n?o disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusebia. Achei-a a reprehender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir fallar-me, com um alvoro?o, um prazer t?o sincero, que me desacanhou logo. Creio que chegou a cingir-me com o seu par de bra?os robustos. Fez-me sentar ao p? de si, na varanda, entre muitas exclama??es de contentamento.

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