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Read Ebook: Memorial de Ayres by Machado De Assis

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Ebook has 969 lines and 58175 words, and 20 pages

MACHADO DE ASSIS

DA ACADEMIA BRAZILEIRA

MEMORIAL DE AYRES

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

RIO DE JANEIRO

PARIS

Em Lixboa, sobre lo mar, Barcas novas mandey lavrar...

Para veer meu amigo Que talhou preyto comigo, Al? vou, madre. Para veer meu amado Que mig'a preyto talhado, Al? vou, madre.

Ora bem, faz hoje um anno que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta data foi, estando a beber caf?, o preg?o de um vendedor de vassouras e espanadores: <> Costumo ouvil-o outras manh?s, mas desta vez trouxe-me ? mem?ria o dia do desembarque, quando cheguei apozentado ? minha terra, ao meu Cattete, ? minha lingua. Era o mesmo que ouvi ha um anno, em 1887, e talvez fosse a mesma boca.

Durante os meus trinta e tantos annos de diplomacia algumas vezes vim ao Brazil, com licen?a. O mais do tempo vivi f?ra, em varias partes, e n?o foi pouco. Cuidei que n?o acabaria de me habituar novamente a esta outra vida de c?. Pois acabei. Certamente ainda me lembram cousas e pessoas de longe, divers?es, paizagens, costumes, mas n?o morro de saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.

Cinco horas da tarde.

Recebi agora um bilhete de mana Rita, que aqui vae colado:

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N?o vejo necessidade disso, mas respondi que sim.

Fomos ao cemiterio. Rita, apezar da alegria do motivo, n?o p?de reter algumas velhas lagrimas de saudade pelo marido que l? est? no jazigo, com meu pae e minha m?e. Ella ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, l? se v?o tantos annos. No caix?o do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, ent?o pretos, emquanto os mais delles ficaram a embranquecer c? f?ra.

N?o ? feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples,--a inscri??o e uma cruz,-mas o que est? ? bem feito. Achei-o novo de mais, isso sim. Rita fal-o lavar todos os mezes, e isto impede que envelhe?a. Ora, eu creio que um velho tumulo d? melhor impress?o do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrario parece sempre da vespera.

Rita orou deante delle alguns minutos, emquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas proximas. Em quasi todas havia a mesma antiga suplica da nossa: <> Rita me disse depois, em caminho, que ? seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por todos os que alli est?o. Talvez seja a unica. A mana ? boa creatura, n?o menos que alegre.

A impress?o que me dava o total do cemiterio ? a que me deram sempre outros; tudo alli estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras, eram diversos, mas immoveis. S? alguns passaros davam sinal de vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorgeando. Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.

J? perto do port?o, ? sa?da, falei a mana Rita de uma senhora que eu vira ao p? de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, em quanto ella rezava. Era mo?a, vestia de preto, e parecia rezar tambem, com as m?os cruzadas e pendentes. A cara n?o me era extranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilissima, como ouvi dizer de outras em Roma.

--Onde est??

Disse-lhe onde estava. Quiz ver quem era. Rita, alem de boa pessoa, ? curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que esperassemos alli mesmo, ao port?o.

--N?o! pode n?o vir t?o cedo, vamos espial-a de longe. ? assim bonita?

--Pareceu-me.

Entr?mos e enfi?mos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma distancia, Rita deteve-se.

--Voc? conhece, sim. J? a viu l? em casa, ha dias.

--Quem ??

--? a viuva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.

J? agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que l? apareceu em Andarahy, a quem Rita me aprezentou e com quem falei alguns minutos.

--Viuva de um medico, n?o ??

-Isso; filha de um fazendeiro da Parahyba do Sul, o bar?o de Santa-Pia.

Nesse momento, a viuva descruzava as m?os, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava s?. Talvez quizesse beijar a sepultura, o proprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquella manh?. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: <> Tratavam de caix?o pezado, naturalmente, mas eu voltei depressa a aten??o para a viuva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar para traz. Encoberto por um mausoleu, n?o a pude ver mais nem melhor que a principio. Ella foi descendo at? o port?o, onde passava um bonde em que entrou e partiu. N?s descemos depois e viemos no outro.

Rita contou-me ent?o alguma cousa da vida da mo?a e da felicidade grande que tivera com o marido, alli sepultado ha mais de dous annos. Pouco tempo viveram juntos. Eu, n?o sei por que inspira??o maligna, arrisquei esta reflex?o:

--N?o quer dizer que n?o venha a cazar outra vez.

--Aquella n?o caza.

--Quem lhe diz que n?o?

--N?o caza; basta saber as circumstancias do cazamento, a vida que tiveram e a dor que ella sentiu quando enviuvou.

--N?o quer dizer nada, pode cazar; para cazar basta estar viuva.

--Mas eu n?o cazei.

--Voc? ? outra cousa, voc? ? unica.

Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabe?a, como se me chamasse <>. Logo ficou seria, porque a lembran?a do marido fazia-a realmente triste. Meti o caso ? bulha; ella, depois de aceitar uma ordem de ideias mais alegre, convidou-me a ver se a viuva Noronha cazava commigo; apostava que n?o.

--Com os meus sessenta e dous annos?

--Oh! n?o os parece: tem a verdura dos trinta.

Pouco depois cheg?mos a casa e Rita almo?ou commigo. Antes do almo?o, torn?mos a falar da viuva e do cazamento, e ella repetiu a aposta. Eu, lembrando-me de Goethe, disse-lhe:

--Mana, voc? est? a querer fazer commigo a aposta de Deus e de Mephistopheles; n?o conhece?

--N?o conhe?o.

--Vamos almo?ar. N?o quero saber desses prologos nem de outros; repito o que disse, e veja voc? se refaz o que l? vae desfeito. Vamos almo?ar.

Fomos almo?ar; ?s duas, horas Rita voltou para Andarahy, eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade.

Na conversa de ante-hontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher, que l? est? enterrada em Vienna. Pela segunda vez falou-me em transportal-a para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto della, mas que, em minha opini?o, os mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que est?o muito melhor com os seus.

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