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Read Ebook: Memorial de Ayres by Machado De Assis

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Ebook has 969 lines and 58175 words, and 20 pages

Na conversa de ante-hontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher, que l? est? enterrada em Vienna. Pela segunda vez falou-me em transportal-a para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto della, mas que, em minha opini?o, os mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que est?o muito melhor com os seus.

--Quando eu morrer, irei para onde ella estiver, no outro mundo, e ella vir? ao meu encontro, disse eu.

Sorriu, e citou o exemplo da viuva Noronha que fez transportar o marido de Lisboa, onde faleceu, para o Rio de Janeiro, onde ella conta acabar. N?o disse mais sobre este assunto, mas provavalmente tornar? a elle, at? alcan?ar o que lhe parece. J? meu cunhado dizia que era seu costume della, quando queria alguma cousa.

Outra cousa que n?o escrevi foi a alus?o que ella fez ? gente Aguiar, um cazal que conheci a ultima vez que vim, com licen?a, ao Rio de Janeiro, e agora encontrei. S?o amigos della e da viuva, e celebram daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. J? os visitei duas vezes e o marido a mim. Rita falou-me delles com simpatia e aconselhou-me a ir comprimental-os por ocasi?o das festas anniversarias.

--L? encontrar? Fidelia.

--Que Fidelia?

--A viuva Noronha.

--Chama-se Fidelia?

--Chama-se.

--O nome n?o basta para n?o cazar.

--Tanto melhor para voc?, que vencer? a pessoa e o nome, e acabar? cazando com a viuva. Mas eu repito que n?o caza.

A unica particularidade da biografia de Fidelia ? que o pae e o sogro eram inimigos politicos, chefes de partido na Parahyba do Sul. Inimizade de familias n?o tem impedido que mo?os se amem, mas ? preciso ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as familias de Romeo e de Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; tambem dizem que nunca existiram, salvo na tradi??o ou somente na cabe?a de Shakespeare.

Agora, como foi que elles se amaram,-os namorados da Parayba do Sul,-? o que Rita me n?o referiu, e seria curioso saber. Romeo e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia,-porque o pae do nosso Romeo era advogado na cidade da Parahyba,-? um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita n?o entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, heide pedir-lh'os. Talvez ella os recuse imaginando que come?o deveras a morrer pela dama.

T?o depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente delle, que para l? ia. Comprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me noticias de Rita, e fal?mos durante alguns minutos sobre cousas geraes.

Isto foi hontem. Hoje de manh? recebi um bilhete de Aguiar, convidando-me, em nome da mulher e delle, a ir l? jantar no dia 24. S?o as bodas de prata. <> escreveu elle. Soube depois que ? festa recolhida. Rita vae tambem. Resolvi aceitar, e vou.

Tres dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre. Hoje estou bom, e segundo o medico, posso ja sair amanh?; mas poderei ir ?s bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr. Silva me aconselhou que n?o v?; mana Rita que tratou de mim dous dias, ? da mesma opini?o. Eu n?o a tenho contraria, mas se me achar lepido e robusto, como ? possivel, custar-me-ha n?o ir. Veremos; tres dias passam depressa.

Seis horas da tarde.

Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shellev e tambem de Thackeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-me d'aquelle; ? assim que o engenho completa o engenho, e o espirito aprende as linguas do espirito.

Nove horas da noite.

Rita jantou commigo; disse-lhe que estou s?o como um pero, e com for?as para ir ?s bodas de prata. Ella, depois de me aconselhar prudencia, concordou que, se n?o tiver mais nada, e f?r comedido ao jantar, posso ir; tanto mais que os meus olhos ter?o l? dieta absoluta.

--Creio que Fidelia n?o vae, explicou.

--N?o vae?

--Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando ellas lhe aparecem ? por dias, e n?o v?o sem muito remedio e muita paciencia. Talvez v? visital-a amanh? ou depois.

Rita acrescentou que para o casal Aguiar ? meio desastre; contavam com ella, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, elles a ella, e ella a elles, e todos se merecem, ? o parecer de Rita e pode vir a ser o meu.

--Creio. J? agora, se me n?o sentir impedido, irei sempre. Tambem a mim parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos?

--Nunca. S?o muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Voc? n?o imagina como s?o amigos um do outro. Eu n?o os frequento muito, porque vivo metida commigo, mas o pouco que os visito basta para saber o que valem, ella principalmente. O desembargador Campos, que os conhece desde muitos annos, pode dizer-lhe o que elles s?o.

--Haver? muita gente ao jantar?

--N?o, creio que pouca. A maior parte dos amigos ir? de noite. Elles s?o modestos, o jantar ? s? dos mais intimos, e por isso o convite que fizeram a voc? mostra grande simpatia pessoal.

--J? senti isso, quando me apresentaram a elles, ha sete annos, mas ent?o supuz que era mais por causa do ministro que do homem. Agora, quando me receberam, foi com muito gosto. Pois l? vou no dia 24, haja ou n?o haja Fidelia.

L? fui hontem ?s bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as minhas impress?es da noite.

N?o podiam ser melhores. A primeira dellas foi a uni?o do casal. Sei que n?o ? seguro julgar por uma festa de algumas horas a situa??o moral de duas pessoas. Naturalmente a ocasi?o aviva a memoria dos tempos passados, e a affei??o dos outros como que ajuda a duplicar a propria. Mas n?o ? isso. Ha nelles alguma cousa superior ? oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os annos tinham ali refor?ado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma s? e unica. N?o senti, n?o podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.

Aguiar veiu receber-me ? porta da sala,-eu diria que com uma inten??o de abra?o, se pudesse havel-a entre n?s e em tal logar; mas a m?o fez esse oficio, apertando a minha efusivamente. ? homem de sessenta annos feitos , corpo antes cheio que magro, agil, ameno e risonho. Levou-me ? mulher, a um lado da sala, onde ella conversava com duas amigas. N?o era nova para mim a gra?a da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu comprimento davam-lhe ? express?o do rosto algo que tolera bem a qualifica??o de radiante. Estendeu-me a m?o, ouviu-me e inclinou a cabe?a, olhando de relance para o marido.

Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim; vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi que eram familiares da casa. Em meio da conversa??o, ouvi esta palavra inesperada a uma senhora, que dizia a outra:

--N?o v? Fidelia ter ficado peor.

--Ella vem? perguntou a outra.

--Mandou dizer que vinha; est? melhor; mas talvez lhe fa?a mal.

O mais que as duas disseram, relativamente ? viuva, foi bem. O que me dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar aten??o maior que o assunto nem perder as aparencias della. Pela hora proxima do jantar supuz que Fidelia n?o viesse. Supuz errado. Fidelia e o tio foram os ultimos chegados, mas chegaram. O alvoro?o com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a alegria de a ver ali, apenas convalecida, e apezar do risco de voltar ? noite. O prazer de ambas foi grande.

Fidelia n?o deixou inteiramente o luto; trazia ?s orelhas dous coraes, e o medalh?o com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e adorno escuro. As joias e um raminho de myosotis ? cinta vinham talvez em homenagem ? amiga. J? de manh? lhe enviara um bilhete de comprimentos acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em cima de um movel com outros presentinhos anniversarios.

Ao vel-a agora, n?o a achei menos saborosa que no cemiterio, e ha tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa tambem. Parece feita ao torno, sem que este vocabulo d? nenhuma ideia de rigidez; ao contrario, ? flexivel. Quero aludir somente ? corre??o das linhas,-falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pelle macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe n?o ficam mal ? viuvez. Foi o que vi logo ? chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veiu vindo pela noite adiante, at? que ella se foi embora. N?o era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversa??o. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa. N?o pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes, em caza, como l? ficou dito atraz, e tirado de uma das suas estancias de 1821:

Assim disse commigo em inglez, mas logo depois repeti em prosa nossa a confiss?o do poeta, com um fecho da minha composi??o: <>

Esta confiss?o n?o me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veiu tomar-me o bra?o, segui como se fosse para um jantar de nupcias. Aguiar deu o bra?o a Fidelia, e sentou-se entre ella e a mulher. Escrevo estas indica??es sem outra necessidade mais que a de dizer que os dous conjuges, ao p? um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidelia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o cora??o aos dous,-hiperbole permitida para dizer que em ambos n?s, em mim, ao menos, repercutia a felicidade daquelles vinte e cinco annos de paz e consola??o.

A dona da casa, afavel, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz naquella data; n?o menos o marido. Talvez elle fosse ainda mais feliz que ella, mas n?o saberia mostral-o tanto. D. Carmo possue o dom de falar e viver por todas as fei??es, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto d?o ? velhice um relevo particular, e fazem cazar nella todas as idades. N?o, sei se me explico bem, nem ? preciso dizer melhor para o fogo a que lan?arei um dia estas folhas de solitario.

De quando em quando, ella e o marido trocavam as suas impress?es com os olhos, e pode ser que tambem com a fala. Uma s? vez a impress?o visual foi melancolica. Mais tarde ouvi a explica??o a mana Rita. Um dos convivas,-sempre ha indiscretos,-no brinde que lhes fez aludiu ? falta de filhos, dizendo <> N?o falou em verso, mas a ideia suportaria o metro e a rima, que o autor talvez houvesse cultivado em rapaz; or?ava agora pelos cincoenta annos, e tinha um filho. Ouvindo aquella referencia, os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita me disse depois que essa era a unica ferida do cazal. Creio que Fidelia percebeu tambem a express?o de tristeza dos dous, porque eu a vi inclinar-se para ella com um gesto do calis e brindar a D. Carmo cheia de gra?a e ternura:

--? sua felicidade.

A esposa Aguiar, comovida, apenas pode responder logo com o gesto; s? instantes depois de levar o calis ? boca, acrescentou, em voz meia surda, como se lhe custasse sair do cora??o apertado esta palavra de agradecimento:

--Obrigada.

Tudo foi assim segredado, quasi calado. O marido aceitou a sua parte do brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.

Quando transmiti esta impress?o a Rita, disse ella que eram desculpas de mau pagador, isto ? que eu, temendo n?o vencer a resistencia da mo?a, dava-me por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a apologia da paix?o conjugal de Fidelia.

--Todas as pessoas daqui e de fora que os viram,-continuou,-podem dizer a voc? o que foi aquelle cazal. Basta saber que se uniram, como j? lhe disse, contra a vontade dos dous paes, e amaldi?oados por ambos. D. Carmo tem sido confidente da amiga, e n?o repete o que lhe ouve por discreta, resume s? o que pode, com palavras de afirma??o e de admira??o. Tenho-as ouvido muita vez. A mim mesma Fidelia conta alguma cousa. Converse com o tio... Olhe, elle que lhe diga tambem da gente Aguiar...

Neste ponto interrompi:

--Pelo que ou?o, emquanto eu andava l? f?ra, a reprezentar o Brazil, o Brazil fazia-se o seio de Abrah?o. Voc?, o cazal Aguiar, o cazal Noronha, todos os cazaes, em suma, faziam-se modelos de felicidade perpetua.

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