Read Ebook: Esau e Jacob by Machado De Assis
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Ebook has 1433 lines and 68175 words, and 29 pages
Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os meninos, ambos nos ber?os, as amas ao p?, um pouco admiradas da insistencia com que ella os procurava desde manh?. N?o era s? fital-os, ou perder os olhos no espa?o e no tempo; era beijal-os tambem e apertal-os ao cora??o. Esqueceu-me dizer que, de manh?, Perpetua mudou primeiro de roupa que a irm? e foi achal-a deante dos ber?os, vestida como viera do Castello.
--Logo vi que voc? estava com os grandes homens, disse ella.
--Estou, mas n?o sei em que ? que elles ser?o grandes.
--Seja em que f?r, vamos almo?ar.
Ao almo?o e durante o dia, falaram muita vez da cabocla e da predic??o. Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimula??o nos olhos. Quiz calar e esperar, mas estava t?o anciosa de lhe dizer tudo, e era t?o boa, que resolveu o contrario. Unicamente n?o teve o tempo de cumpril-o; antes mesmo de come?ar, j? elle acabava de perguntar o que era. Natividade referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; descreveu a cabocla e o pae.
--Mas ent?o grandes destinos?
--Cousas futuras, repetiu ella.
--Seguramente futuras. S? a pergunta da briga ? que n?o entendo. Brigar porqu?? E brigar como? E teriam deveras brigado?
Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da gesta??o, confessando que n?o falou mais delles para o n?o affligir; naturalmente ? o que a outra adivinhou que fosse briga.
--Mas briga porqu??
--Isso n?o sei, nem creio que fosse nada mau.
--Vou consultar...
--Consultar a quem?
--Uma pessoa.
--J? sei, o seu amigo Placido.
--Se fosse s? amigo n?o consultava, mas elle ? o meu chefe e mestre, tem uma vista clara e comprida, dada pelo c?u... Consulto s? por hypothese, n?o digo os nossos nomes...
--N?o! n?o! n?o!
--S? por hypothese.
--N?o, Agostinho, n?o fale disto. N?o interrogue ninguem a meu respeito, ouviu? Ande, prometta que n?o falar? disto a ninguem, spiritas nem amigos. O melhor ? calar. Basta saber que ter?o sorte feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho.
--Mas voc? n?o foi em pessoa ? cabocla?
--N?o me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, n?o me tornar? a ver. Ande, jure!
--Voc? ? exquisita. V? l?, prometto. Que tem que falasse, assim, por acaso?
--N?o quero. Jure!
--Pois isto ? cousa de juramento?
--Sem isso, n?o confio, disse ella sorrindo.
--Juro.
--Jure por Deus Nosso Senhor!
--Juro por Deus Nosso Senhor.
Um caso unico!
Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas emfim cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento n?o lhe saiu mais da briga uterina dos filhos. Quiz esquecel-a. Jogou essa noite, como de costume; na seguinte, foi ao theatro; na outra a uma visita; e tornou ao voltarete do costume, e a briga sempre com elle. Era um mysterio. Talvez fosse um caso unico... Unico! Um caso unico! A singularidade do caso fel-o aggarrar-se mais ? ideia, ou a ideia a elle; n?o posso explicar melhor este phenomeno intimo, passado l? onde n?o entra olho de homem, nem bastam reflex?es ou conjecturas. Nem por isso durou muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi ? casa do doutor Placido, rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de trez janellas, com muito terreno para o lado do mar. Creio que j? n?o existe: datava do tempo em que a rua era o Caminho Velho, para differen?ar do Caminho Novo.
Perdoa estas minucias. A ac??o podia ir sem ellas, mas eu quero que saibas que casa era, e que rua, e mais digo que alli havia uma especie de club, templo ou o que quer que era spirita. Placido fazia de sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas, olho azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. P?e-lhe uma vara na m?o, e fica um magico, mas, em verdade, as barbas e a camisola n?o as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrario de Santos, que teria trocado dez vezes a cara, se n?o f?ra a opposi??o da mulher, Placido usava as barbas inteiras desde mo?o e a camisola ha dez annos.
--Venha, venha, disse elle, ande ajudar-me a converter o nosso amigo Ayres; ha meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas elle resiste.
--N?o, n?o, n?o resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta annos, estendendo a m?o ao recem-chegado.
Esse Ayres
Esse Ayres que ahi apparece conserva ainda agora algumas das virtudes d'aquelle tempo, e quasi nenhum vicio. N?o attribuas tal estado a qualquer proposito. Nem creias que vae nisto um pouco de homenagem ? modestia da pessoa. N?o, senhor, ? verdade pura e natural effeito. Apesar dos quarenta annos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, era um bello typo de homem. Diplomata de carreira, cheg?ra dias antes do Pacifico, com uma licen?a de seis mezes.
N?o me demoro em descrevel-o. Imagina s? que trazia o callo do officio, o sorriso approvador, a fala branda e cautelosa, o ar da occasi?o, a express?o adequada, tudo t?o bem distribuido que era um gosto ouvil-o e vel-o. Talvez a pelle da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros signaes do tempo. Ainda assim o bigode, que era mo?o na c?r e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio seculo chegasse. O mesmo faria o cabello, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabe?a havia um inicio de calva. Na botoeira uma flor eterna.
Tempo houve,--foi por occasi?o da anterior licen?a, sendo elle apenas secretario de lega??o,--tempo houve em que tambem elle gostou de Nativividade. N?o foi propriamente paix?o; n?o era homem disso. Gostou della, como de outras joias e raridades, mas t?o depressa viu que n?o era acceito, trocou de conversa??o. N?o era frouxid?o ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas. A quest?o para elle ? que nem as queria ? for?a, nem curava de as persuadir. N?o era general para escala ? vista, nem para assedios demorados; contentava-se de simples passeios militares,--longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo. Em summa, extremamente cordato.
Coincidencia interessante; foi por esse tempo que Santos pensou em casal-o com a cunhada, recentemente viuva. Esta parece que queria. Natividade oppoz se, nunca se soube porqu?. N?o eram ciumes; invejas n?o creio que fossem. O simples desejo de o n?o ver entrar na familia pela porta lateral ? apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras hypotheses negadas. O desgosto de cedel-o a outra, ou tel-os felizes ao p? de si, n?o podia ser, posto que o cora??o seja o abysmo dos abysmos. Supponhamos que era com o fim de o punir por havel-a amado.
P?de ser; em todo caso, o maior obstaculo viria delle mesmo. Posto que viuvo, Ayres n?o foi propriamente casado. N?o amava o casamento. Casou por necessidade do officio; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro, e pediu a primeira mo?a que lhe pareceu adequada ao seu destino. Enganou-se: a differen?a de temperamento e de espirito era tal que elle, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse s?. N?o se affligiu com a perda; tinha o feitio do solteir?o.
Era cordato, repito, embora esta palavra n?o exprima exactamente o que quero dizer. Tinha o cora??o disposto a acceitar tudo, n?o por inclina??o ? harmonia, sen?o por tedio ? controversia. Para conhecer esta avers?o, bastava tel-o visto entrar, antes, em visita ao casal Santos. Pessoas de f?ra e da familia conversavam da cabocla do Castello.
--Chega a proposito, conselheiro, disse Perpetua. Que pensa o senhor da cabocla do Castello?
Ayres n?o pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma cousa, e fez um gesto de dous sexos. Como insistissem, n?o escolheu nenhuma das duas opini?es, achou outra, media, que contentou a ambos os lados, cousa rara em opini?es medias. Sabes que o destino dellas ? serem desdenhadas. Mas este Ayres,--Jos? da Costa Marcondes Ayres,--tinha que nas controversias uma opini?o dubia ou media p?de trazer a opportunidade de uma pilula, e compunha as suas de tal geito, que o enfermo, se n?o sarava, n?o morria, e ? o mais que fazem pilulas. N?o lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com assucar. Ayres opinou com pausa, delicadeza, circumloquios, limpando o monoculo ao len?o de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembran?a, e achava a lembran?a, e arredondava com ella o parecer. Um dos ouvintes acceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de accordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.
< < < Dico, che quando l'anima mal nata... A epigraphe Ora, alli est? justamente a epigraphe do livro, se eu lhe quizesse p?r alguma, e n?o me occorresse outra. N?o ? s?mente um meio de completar as pessoas da narra??o com as ideias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que f?r menos claro ou totalmente escuro. Por outro lado, ha proveito em irem as pessoas da minha historia collaborando nella, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, especie de troca de servi?os, entre o enxadrista e os seus trebelhos. Se acceitas a compara??o, distinguir?s o rei e a dama, o bispo e o cavallo, sem que o cavallo possa fazer de torre, nem a torre de pi?o. Ha ainda a differen?a da c?r, branca e preta, mas esta n?o tira o poder da marcha de cada pe?a, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vae o mundo. Talvez conviesse p?r aqui, de quando em quando, como nas publica??es do jogo, um diagramma das posi??es bellas ou difficeis. N?o havendo taboleiro, ? um grande auxilio este processo para acompanhar os lances, mas tambem p?de ser que tenhas vis?o bastante para reproduzir na memoria as situa??es diversas. Creio que sim. F?ra com diagrammas! Tudo ir? como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo. A lic??o do discipulo
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