bell notificationshomepageloginedit profileclubsdmBox

Read Ebook: Papeis Avulsos by Machado De Assis

More about this book

Font size:

Background color:

Text color:

Add to tbrJar First Page Next Page

Ebook has 849 lines and 55871 words, and 17 pages

MACHADO DE ASSIS

PAPEIS AVULSOS

O ALIENISTA--THEORIA DO MEDALH?O A CHINELA TURCA NA ARCA--D. BENEDICTA--O SEGREDO DO BONZO O ANNEL DE POLYCRATES O EMPRESTIMO--A SERENISSA REPUBLICA O ESPELHO UMA VISITA DE ALCIBIADES--VERBA TESTAMENTARIA

RIO DE JANEIRO

Typographia e Lithographia a vapor, Encaderna??o e Livraria

LOMBAERTS & C.

OBRAS DO AUTOR

Memorias Posthumas de Braz Cubas Papeis Avulsos Helena Yay? Garcia Ressurrei??o A m?o e a luva Historias da meia noite Contos Fluminenses Americanas Phalenas Chrysalidas Tu s?, tu, puro amor

ADVERTENCIA

Quanto ao genero delles, n?o sei que diga que n?o seja inutil. O livro est? nas m?os do leitor. Direi s?mente, que se ha aqui paginas que parecem meros contos, e outras que o n?o s?o, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outros podem achar nellas algum interesse, e das primeiras defendo-me com S. Jo?o e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalyptica, accrescentava : "E aqui ha sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquella palavra. Quanto a Diderot, ninguem ignora que elle, n?o s? escrevia contos, e alguns deliciosos, mas at? aconselhava a um amigo que os escrevesse tambem. E eis a raz?o do encyclopedista: ? que quando se faz um conto, o espirito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba sem a gente dar por isso.

Deste modo, venha donde vier o reproche, espero que dahia mesmo vir? a absolvi??o.

Machado de Assis

Outubro de 1882.

O ALIENISTA

DE COMO ITAGUAHY GANHOU UMA CASA DE ORATES

As chronicas da villa de ltaguahy dizem que em tempos remotos vivera alli um certo medico, o Dr. Sim?o Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos medicos do Brazil, de Portugal e das Hespanhas. Estudara em Coimbra e Padua. Aos trinta e quatro annos regressou ao Brazil, n?o podendo el-rei alcan?ar delle que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou era Lisboa, expedindo os negocios da monarchia.

--A sciencia, disse elle a Sua Magestade, ? o meu emprego unico; ltaguahy ? o meu universo.

Dito isto, metteu-se em ltaguahy, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da sciencia, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os theoremas com cataplasmas. Aos quarenta annos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco annos, viuva de um juiz de f?ra, e n?o bonita nem sympathica. Um dos tios delle, ca?ador de pacas perante o Eterno, e n?o menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lh'o. Sim?o Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condi??es physiologicas e anatomicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excellente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, s?os e intelligentes. Se al?m dessas prendas,--unicas dignas da preoecupa??o de um sabio, D. Evarista era mal composta de fei??es, longe de lastimal-o, agradecia-o a Deus, porquanto n?o corria o risco de preterir os interesses da sciencia na contempla??o exclusiva, miuda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu ?s esperan?as do Dr. Bacamarte, n?o lhe deu filhos robustos nem mofinos. A indole natural da sciencia ? a longanimidade; o nosso medico esperou tres annos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da materia, releu todos os escriptores arabes e outros, que trouxera para Itaguahy, enviou consultas ?s universidades italianas e allem?s, e acabou por aconselhar ? mulher um regimen alimenticio especial. A illustre dama, nutrida exclusivamente com a bella carne de porco de Itaguahy, n?o attendeu ?s admoesta??es do esposo; e ? sua resistencia,--explicavel, mas inqualificavel,--devemos a total extinc??o da dynastia dos Bacamartes.

Mas a sciencia tem o ineffavel dom de curar todas as magoas; o nosso medico mergulhou inteiramente no estudo e na pratica da medicina. Foi ent?o que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atten??o,--o recanto psychico, o exame da pathologia cerebral. N?o havia na colonia, e ainda no reino, uma s? autoridade em semelhante materia, mal explorada, ou quasi inexplorada. Sim?o Bacamarte comprehendeu que a sciencia lusitana, e particularmente a brazileira, podia cobrir-se de <>--express?o usada por elle mesmo, mas em um arroubo de intimidade domestica; exteriormente era modesto, segundo conv?m aos sabedores.

--A saude da alma, bradou elle, ? a occupa??o mais digna do medico.

--Do verdadeiro medico, emendou Crispim Soares, boticario da villa, e um dos seus amigos e comensaes.

A verean?a de Itaguahy, entre outros peccados de que ? arguida pelos chronistas, tinha o de n?o fazer caso dos dementes. Assim ? que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na propria casa, e, n?o curado, mas descurado, at? que a morte o vinha defraudar do beneficio da vida; os mansos andavam ? solta pela rua. Sim?o Bacamarte entendeu desde logo reformar t?o ruim costume; pediu licen?a ? camara para agasalhar e tratar no edificio que ia construir todos os loucos de Itaguahy e das demais villas e cidades, mediante um estipendio, que a camara lhe daria quando a familia do enfermo o n?o podesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a villa, e encontrou grande resistencia, t?o certo ? que difficilmente se desarraigam habitos absurdos, ou ainda m?us. A id?a de metter os loucos na mesma casa, vivendo em commum, pareceu em si mesma um symptoma de demencia, e n?o faltou quem o insinuasse ? propria mulher do medico.

--Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigario do logar, veja se seu marido d? um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, n?o ? bom, vira o juizo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe <>, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a elle lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquelle grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a inten??o da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que n?o tivesse medo. Dalli foi ? camara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquencia, que a maioria resolveu autorisal-o ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doudos pobres. A materia do imposto n?o foi facil achal-a, tudo estava tributado em Itaguahy. Depois de longos estudos, assentou-se em permittir o uso de dous pennachos nos cavallos dos enterros. Quem quizesse emplumar os cavallos de um coche mortuario pagaria dois tost?es ? camara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do fallecimento e a da ultima ben??o na sepultura. O escriv?o perdeu-se nos calculos arithmeticos do rendimento possivel da nova taxa: e um dos vereadores, que n?o acreditava na empreza do medico, pediu que se relevasse o escriv?o de um trabalho inutil.

--Os calculos n?o s?o precisos, disse elle, porque o Dr. Bacamarte n?o arranja nada. Quem ? que viu agora metter todos os doudos dentro da mesma casa?

A Casa Verde foi o nome dado ao asylo, por allus?o ? c?r das janellas, que pela primeira vez appareciam verdes em Itaguahy. Inaugurou-se com immensa pompa; de todas as villas e povoa??es proximas, e at? remotas, e da propria cidade do Rio de Janeito, correu gente para assistir ?s ceremonias, que duraram sete dias. Muitos dementes j? estavam recolhidos; e os parentes tiveram occasi?o de ver o carinho paternal e a caridade christ? com que elles iam ser tratados. D. Evarista, contentissima com a gloria do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, fl?res e sedas. Ella foi uma verdadeira rainha naquelles dias memoraveis; ninguem deixou de ir visital-a duas e trez vezes, apezar dos costumes caseiros e recatados do seculo, e n?o s? a cortejavam como a louvavam; porquanto,--e este facto ? um documento altamente honroso para a sociedade do tempo,--porquanto viam nella a feliz esposa de um alto espirito, de um var?o illustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas publicas; Itaguahy tinha finalmente uma casa de Orates.

TORRENTE DE LOUCOS

Tres dias depois, n'uma expans?o intima com o boticario Crispim Soares, desvendou o alienista o mysterio do seu cora??o.

--A caridade, Sr. Soares, entra de certo no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das cousas, que ? assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Corinthios: <> O principal nesta minha obra da Casa Verde ? estudar profundamente a loucura, os seus diversos gr?os, classificar-lbe os casos, descobrir emfim a causa do phenomeno e o remedio universal. Este ? o mysterio do meu cora??o. Creio que com isto presto um bom servi?o ? humanidade.

--Um excellente servi?o, corrigiu o boticario.

--Sem este asylo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; elle d?-me, por?m, muito maior campo aos meus estudos.

--Muito maior, accrescentou o outro.

E tinham raz?o. De todas as villas e arraiaes visinhos affluiam loucos ? Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaniacos, era toda a familia dos desherdados do espirito. Ao cabo de quatro mezes, a Casa Verde era uma povoa??o. N?o bastaram os primeiros cubiculos: mandou-se annexar uma galeria de mais trinte e sete. O padre Lopes confessou que n?o imaginara a existencia de tantos doudos no mundo, e menos ainda o inexplicavel de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vill?o, que todos os dias, depois do almo?o, fazia regularmente, um discurso academico, ornado de tropos, de antitheses, de apostrophes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cicero, Apuleo e Tertuliano. O vigario n?o queria acabar do crer. Que! um rapaz que elle vira, tres mezes antes, jogando peteca na rua!

--N?o digo que n?o, respondia-lhe o alienista; mas a verdade ? o que Vossa Reverendissima est? vendo. Isto ? todos os dias.

--Quanto a mim, tornou o vigario, s? se p?de explicar pela confus?o das linguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escriptura; provavelmente, confundidas antigamente as linguas, ? facil trocal-as agora, desde que a raz?o n?o trabalhe...

--Essa p?de ser, com effeito, a explica??o divina do phenomeno, concordou o alienista, depois de reflectir um instante, mas n?o ? impossivel que haja tambem alguma raz?o humana, e puramente scientifica, e disso trato...

--V? que seja, e fico ancioso. Realmente!

Os loucos por amor eram tres ou quatro, mas s? dous espantavam pelo curioso do delirio. O primeiro, um Falc?o, rapaz de vinte e cinco annos, suppunha-se estrella d'alva, abria os bra?os e alargava as pernas, para dar-lhes certa fei??o de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol j? tinha sahido para elle recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, ? roda das salas ou do pateo, ao longo dos corredores, ? procura do fim do mundo. Era um desgra?ado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e sahiu-lhes no encal?o; achou-os duas horas depois, ao p? de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ciume satisfez-se, mas o vingado estava louco. E ent?o come?ou aquella ancia de ir ao fim do mundo ? cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notaveis. O mais notavel era um pobre diabo, filho de um algibebe, que narrava ?s paredes toda a sua genealogia, que era esta:

--Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou David, David engendrou a purpura, a purpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquez, o marquez engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

--Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

Outro da mesma especie era um escriv?o, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabe?as a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e n?o acabava mais. N?o fallo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se Jo?o de Deus, dizia agora ser o deus Jo?o, e promettia o reino dos c?os a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que n?o dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma s? palavra, todas as estrellas se despegariam do c?u e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia elle no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse scientifico.

Uma vez desonerado da administra??o, o alienista procedeu a uma vasta classifica??o dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principaes: os furiosos e os mansos; dahi passou ?s sub-classes, monomanias, delirios, allucina??es diversas. Isto feito, come?ou um estudo aturado e continuo; analysava os habitos de cada louco, as horas do accesso, as avers?es, as sympathias, as palavras, os gestos, as tendencias; inquiria da vida dos enfermos, profiss?o, costumes, circumstancias da revela??o morbida, accidentes da infancia e da mocidade, doen?as de outra especie, antecedentes na familia, uma devassa, emfim, como a n?o faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observa??o nova, uma descoberta interessante, um phenomeno extraordinario. Ao mesmo tempo estudava o melhor regimen, as substancias medicamentosas, os meios curativos e os meios palliativos, n?o s? os que vinham nos seus amados arabes, como os que elle mesmo descobria, ? for?a de sagacidade e paciencia. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma quest?o, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma s? palavra a D. Evarista.

DEUS SABE O QUE FAZ!

A illustre dama, no fim de dous mezes, achou-se a mais desgra?ada das mulheres; cahiu em profunda melancholia, ficou amarella, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. N?o ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nelle o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que ? que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava t?o viuva como dantes. E accrescentou:

--Quem diria nunca que meia duzia de lunaticos...

--Consinto que v?s dar um passeio ao Rio de Janeiro.

Add to tbrJar First Page Next Page

 

Back to top