Read Ebook: Papeis Avulsos by Machado De Assis
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Ebook has 849 lines and 55871 words, and 17 pages
--Consinto que v?s dar um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o ch?o debaixo dos p?s. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto n?o fosse sequer uma pallida sombra do que hoje ?, todavia era alguma cousa mais do que Itaguahy. Ver o Rio de Janeiro, para ella, equivalia ao sonho do hebreu captivo. Agora, principalmente, que o marido assent?ra de vez naquella povoa??o interior, agora ? que ella perdera as ultimas esperan?as de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora ? que elle a convidava a realisar os seus desejos de menina e mo?a. D. Evarista n?o p?de dissimular o gosto de semelhante proposta. Sim?o Bacamarte pegou-lhe na m?o e sorriu,--um sorriso tanto ou quanto philosophico, al?m de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:--<
Mas um dardo atravessou o cora??o de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido, que, se elle n?o ia, ella n?o iria tambem, porque n?o havia de metter-se s?zinha pelas estradas.
--Ir? com sua tia, redarguiu o alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas n?o quizera pedil-o nem insinual-o, em primeiro logar porque seria imp?r grandes despezas ao marido, em segundo logar porque era melhor, mais methodico e racional que a proposta viesse delle.
--Oh! mas o dinheiro que ser? preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convic??o.
--Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda hontem o escripturario prestou-me contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-lactea de algarismos. E depois levou-a ?s arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobr?es sobre dobr?es; era a opulencia. Emquanto ella comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais perfida das allus?es.
--Quem diria que meia duzia de lunaticos...
D. Evarista comprehendeu, sorriu e respondeu com muita resigna??o:
--Deus sabe o que faz!
Tres mezes depois effectuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticario, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguahy, cinco ou seis pagens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a popula??o viu dalli sahir em certa manh? do mez de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Comquanto as lagrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, n?o chegaram a abalal-o. Homem de sciencia, e s? de sciencia, nada o consternava f?ra da sciencia; e se alguma cousa o preoccupava naquella occasi?o, se elle deixava correr pela multid?o um olhar inquieto e policial, n?o era outra cousa mais do que a id?a de que algum demente podia achar-se alli misturado com a gente de juizo.
--Adeus! solu?aram emfim as damas e o boticario.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Sim?o Bacamarte alongava os seus pelo horisonte adiante, deixando ao cavallo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do genio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lagrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.
UMA THEORIA NOVA
Ao passo que D. Evarista, em lagrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Sim?o Bacamarte estudava por todos os lados uma certa id?a arrojada e nova, propria a alargar as bases da psychologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assumptos, e virgulando as fallas de um olhar que mettia medo aos mais heroicos.
Um dia de manh?,--eram passadas tres semanas,--estando Crispim Soares occupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
--Trata-se de negocio importante, segundo elle me disse, aecrescentou o portador.
Sim?o Bacamarte recebeu-o com a alegria propria de um sabio, uma alegria abotoada de circumspec??o at? o pesco?o.
--Estou muito contente, disse elle.
--Noticias do nosso povo? perguntou o boticario com a voz tremula.
O alienista fez um gesto magnifico, e respondeu:
--Trata-se de cousa mais alta, trata-se de uma experiencia scientifica. Digo experiencia, porque n?o me atrevo a assegurar desde j? a minha id?a; nem a sciencia ? outra cousa, Sr. Soares, se n?o uma investiga??o constante. Trata-se, pois, de uma experiencia, mas uma experiencia que vai mudar a face da terra. A loucura, objecto dos meus estudos, era at? agora uma ilha perdida no oceano da raz?o; come?o a suspeitar que ? um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticario. Depois explicou compridamente a sua id?a. No conceito delle a insania abrangia uma vasta superficie de cerebros; e desenvolveu isto com grande c?pia de raciocinios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na historia e em ltaguahy; mas, como um raro espirito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguahy, e refugiou-se na historia. Assim, apontou com especialidade alguns personagens celebres, Socrates, que tinha um demonio familiar, Pascal, que via um abysmo ? esquerda, Mahomet, Caracalla, Domiciano, Caligula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridiculas. E porque o boticario se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma cousa, e at? accrescentou sentenciosamcnte:
--A ferocidade, Sr. Soares, ? o grotesco a serio.
--Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares lovantando as m?os ao c?u.
Quanto ? ideia de ampliar o territorio da loucura, achou-a o boticario extravagante; mas a modestia, principal adorno de seu espirito, n?o lhe sofreu confessar outra cousa al?m de um nobre enthusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acerescentou que era <
--Ha melhor do que annunciar a minha ideia, ? pratical-a, respondeu o alienista ? insinua??o do boticario.
E o boticario, n?o divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor come?ar pela execu??o.
--Sempre haver? tempo de a dar ? matraca, concluiu elle.
Sim?o Bacamarte reflectiu ainda um instante, e disse:
--Suppondo o espirito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ? ver se posso extrahir a perola, que ? a raz?o; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da raz?o e da loucura. A raz?o ? o perfeito equilibrio de todas as faculdades; fora dahi insania, insania, e s? insania.
O vigario Lopes, a quem elle confiou a nova theoria, declarou lisamente que n?o chegava a entendel-a, que era uma obra absurda, e, se n?o era absurda, era de tal modo collossal que n?o merecia principio de execu??o.
--Com a defini??o actual, que ? a de todos os tempos, accrescentou, a loucura e a raz?o est?o perperfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra come?a. Para que transpor a cerca?
Sobre o labio fino e discreto do alienista ro?ou a vaga sombra de uma inten??o de riso, em que o desdem vinha casado ? commisera??o; mas nenhuma palavra sahiu de suas egregias entranhas. A sciencia contentou-se em estender a m?o ? theologia,--com tal seguran?a, que a theologia n?o soube emfim se devia cr?r em si ou na outra. Itaguahy e o universo ficavam ? beira de uma revolu??o.
O TERROR
Quatro dias depois, a popula??o do Itaguahy ouviu consternada, a noticia de que um certo Costa f?ra recolhido ? Casa Verde.
--Impossivel!
--Qual impossivel! foi recolhido hoje de manh?.
--Mas, na verdade, elle n?o merecia... Ainda em cima! depois de tanto que elle fez...
Costa era um dos cidad?os mais estimados de Itaguahy. Herd?ra quatrocentos mil cruzados em boa moeda de el-rei D. Jo?o V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver <
--Agora espero que...--pensou elle sem concluir a phrase.
Esse ultimo rasgo do Costa persuadiu a credulos e incredulos; ninguem mais p?z em duvida os sentimentos cavalheirescos daquelle digno cidad?o. As necessidades mais acanhadas sahiram ? rua, vieram bater-lhe ? porta, com os seus chinellos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, roia a alma do Costa: era o conceito do desaffecto. Mas isso mesmo acabou; trez mezes depois veiu este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lh'os dahi a dous dias; era o residuo da grande heran?a, mas era tambem uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente n?o teve tempo de ser pago; cinco mezes depois era recolhido ? Casa Verde.
Imagina-se a consterna??o de Itaguahy, quando soube do caso. N?o se fallou em outra cousa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almo?o, outros que de madrugada; e contavam-se os accessos, que eram furiosos, sombrios, terriveis,--ou mansos, e at? engra?ados, conforme as vers?es. Muita gente correu ? Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquillo, um pouco espantado, faltando com muita clareza, e perguntando porque motivo o tinham levado para alli. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte approvava esses sentimentos de estima e compaix?o, mas accrescentava que a sciencia era a sciencia, e que elle n?o podia deixar na rua um mentecapto. A ultima pessoa que intercedeu por elle foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem n?o estava no perfeito equilibrio das faculdades mentaes, ? vista do modo como dissip?ra os cabedaes que...
--Isso, n?o! isso n?o! interrompeu a boa senhora com energia. Se elle gastou t?o depressa o que recebeu, a culpa n?o ? delle.
--N?o?
Bacamarte espet?ra na pobre senhora um par de olhos agudos como punhaes. Quando ella acabou, estendeu-lhe a m?o polidamente, como se o fizesse ? propria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir fallar ao primo. A misera acreditou; elle levou-a ? Casa Verde e encerrou-a na galeria dos allucinados.
A noticia desta aleivosia do illustre Bacamarte lan?ou o terror ? alma da popula??o. Ninguem queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que n?o tinha outro crime sen?o o de interceder por um infeliz. Commentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outr'ora dirigira ? prima do Costa, a indigna??o do Costa e o desprezo da prima. E dahi a vingan?a. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que elle levava, pareciam desmentir uma tal hypotbese. Historias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais credulos chegou a murmurar que sabia de outras cousas, n?o as dizia, por n?o ter certeza plena, mas sabia, quasi que podia jurar.
--Voc?, que ? intimo delle, n?o nos podia dizer o que ha, o que houve, que motivo...
Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos attonitos, era para elle uma consagra??o publica. N?o havia duvidar; toda a povoa??o sabia emfim que o privado do alienista era elle, Crispim, o boticario, o collaborador do grande homem e das grandes cousas; dahi a corrida ? botica. Tudo isso dizia o car?o jocundo e o riso discreto do boticario, o riso e o silencio, porque elle n?o respondia nada; um, dous, trez monosyllabos, quando muito, soltos, seccos, encapados no fiel sorriso, constante e miudo, cheio de mysterios scientificos, que elle n?o podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.
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