Read Ebook: A cidade do vicio by Almeida Fialho De Chardron Ernesto Editor
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Ebook has 904 lines and 69679 words, and 19 pages
Editor: Ernesto Chardron
A CIDADE DO VICIO
FIALHO D'ALMEIDA
A CIDADE DO VICIO
Joaquim Xavier de Figueiredo e Mello Oriol Pena
CONTOS
SYMPHONIA DE ABERTURA
Insupportavel, em Lisboa--o thermometro subindo sem attender a supplicas, subindo e putrefazendo tudo, os despojos subterraneos e a frescura das mulheres, a carne de venda a retalho e a carne de aluguer, os artigos dos jornaes diarios e os artigos alimenticios. Em Lisboa transpira-se muito, pela pelle e pelos criados. E ?s vezes, sob o influxo de uma hora de sol ou publicidade, qualquer pessoa se arrisca a ficar com a roupa alagada, e com a reputa??o em fanicos.
No ver?o, similhante phenomeno exagera-se com violencias equatoriaes; nem gelados nem discri??o, logram attenuar-lhe os impetos--? soffrer ou partir. Eu parti.
Tenho amigos, mas s?o os peores inimigos de que dou signal--e por esses caf?s, tabacarias e alamedas, dando-nos o tu da leal camaradagem, trocando charutos, rindo e enla?ando os bra?os, ? de v?r com que risonha perfidia nos sabemos detestar reciprocamente. Esta hostilidade sagaz, enluvada e fina, que se chama ahi confraternisa??o litteraria, e sob cuja egide se d?o jantares no Gibraltar, elogios nas gazetas, e impagaveis desandas em conclaves reconditos, n?o passa d'um voltarete elegante, ganho pelos que sabem rir, e sempre pago pelos que esverdeiam de coleras refreadas. Resumindo, parti s?. Junho, sabem, quando empalidecem os trigos espigados e seccos, as cigarras chiam nas oliveiras, e o azul ? caustico. Come?am pela provincia n'esse tempo romagens aos rusticos eremiterios, e as feiras de gado chamam a turba-multa dos lavradores e maioraes.
Portas f?ra, as mobilias da Baixa abalavam raras ainda, caminho dos oasis burocratas, Sete-Rios, Campo Grande, Bemfica e Lumiar, em que todo o bom official de reparti??o, merceeiro rica?o e tisico pobre, v?o tonificar-se pelo bom ar dos campos, sem deixar todavia os seus mesteres intramuros.
O typho fazia j? propaganda por esses bairros, nas azas do miasma evolto de toda a banda, das portarias surdas, das consciencias gangrenadas, das loterias da Misericordia, dos quarteis, dos tribunaes e dos canos.
O campo em junho, despoetisa-se no paiz cerealifero. Grandes zonas amarellecidas de seara, pastos seccos vestindo a charneca, barrancos sem po?a d'agua, silvados deixando pender as amoras em cachos, e toda a legi?o de migradores que veem de cruzar o Estreito, rolas, cegonhas, cucos... Nos montes de rocha, murtaes irrompem d'entre penedos calvos; os alecrins d?o fl?res em espiguilhas esguias; ascende a vinha arvores acima, vestindo os troncos em pampanos esplendentes; est?o copadas, metallicas e redondas de folhagem, as figueiras picadas dos primeiros capa-r?tas. E ? margem das ribeiras, nas terras gordas e marnosas, os meloaes expandem-se em fructos de meridianos finos, tra?ando de antem?o as bellas talhadas a partir nas melancias rubras e frescas, e n'esses ricos mel?es de cheiro, que em jantares de ceremonia tanta pessoa s?ria teem compromettido. Depois aboboras, frades, gilas, descan?ando em feno ? borda das rigueiras, e picando a monotonia dos caules cellulosos, que rastejando v?o na terra sequiosa das hortas. Todo o pomar maduro--laranjaes florindo para os fructos novos, e mostrando ainda pendentes os fructos velhos; a interminavel colonia das ameixas e abrunhos; os damascos de fallas mansas e contactos velludosos; a pera ventruda e monotona de casca; a ginja e a cereja t?o pittorescas e picantes ? paizagem e ao paladar. E fechando cortejo...
Os pecegos!...
Adorei j? uma mulher que gostava d'elles, e tinha uma gra?a infinita a mordel-os com os seus brancos dentinhos de roedora. Se tomando-lhe a barba com as pontas dos dedos, d?cemente a for?ava a vergar-se toda nas costas da cadeira, para na concha rosea da orelha lhe dep?r algum segredo irritante, a sua vermelha bocca gottejante dos succos perfumados, matava-me de s?de e endoidecia-me d'amor. Pobre quinquilharia loira!... Tamanha voracidade a possuia ante esses fructos voluptuosos e quentes, que d'uma vez enguliu os caro?os e partiu para o cemiterio.
Como peregrino, que de logarejo em logarejo e cabana em cabana, vai seguindo em busca de alguem que lhe foge, assim de bord?o e esclavina como a bella D. Auzenda, eu me aventuro por esses campos e terreolas, fazendo s?sta nos moinhos, convivendo com as boiadas leaes, pernoitando nas eiras sob o olhar das estrellas, passando a vau os rios, cruzando estradas, e detendo-me a colher ?s horas de s?de torrida, os medronhos bravios das espessuras. Esta existencia de cigano reconforta-me e endurece-me. Tenho a pelle tostada, crescida uma grande barba, e os musculos das pernas e bra?os, estriados como um a?o de rija tempera. Janto o rol?o corneo dos cavadores, sardinha salgada com um pichel de vinho alemtejano por cima. N?o leio jornaes, o que explica a singular lucidez que em mim refloresce a espa?os.
Todas as manh?s, o sol me encontra de chapeu na m?o e assobio de melro, nas chapadas adustas que os valles dominam, como pulpitos sobre as naves rumorosas dos templos. De redor de mim, esfarrapam-se as gazes da nevoa matinal; serranias confusas nos longes; faias, salgueiros e platanos desenham a curva sinuosa das ribeiras, onde o rebanho converge a beber manso e manso, n'um rhythmo de chocalhos distantes. E sobre laivos verdes de vegetaes rasteiros, tons pardos de olival, peda?os de seara madura, cannaviaes e hortejos, andam esparsas em pulverisa??es de branco, as casinholas de montes, aldeias, moinhos e conventiculos.
Os gallos tocam alegremente a alvorada; v?o l? baixo trabalhadores de chapeir?o e alforge; tudo canta, sol, gallos, velas de moinhos, gente que passa, quem v?a nos ares, quem saltita nos ramos, quem de pedra em pedra corre no fundo dos limos verdes, quem nos fios telegraphicos vibra, e at? quem chora--t?o phantastica a resonancia d'esta cupula c?rula, extasiada na luz do sol occidental!
Na travessia emprehendida, aponto as differen?as do typo, os usos, a emphase de linguagem, os vestuarios, as habita??es, os processos decorativos de interior, a hospitalidade para estranhos, c?r de pelle e vivacidade ingenita de cada povo e provincia. Ha contos populares, que come?am devotos no Minho e acabam equivocamente no Algarve.
O tom das cantigas, em que se surprehende a indole, cren?as e viver intimo das gentes, decresce em alegria de norte a sul, e occidente para oriente, ? medida que nos vamos afastando da agua, que a vegeta??o ? mais secca, a terra arida, menos profusos os rios, e mais distante o oceano.
Diluida n'essa ?rea formidavel a popula??o rareia, deixando a agricultura sem bra?os. Em pontos a ra?a ? mal cruzada pela fatalidade dos casamentos consanguineos, impostos pela distancia que medeia entre povoado e povoado, e ainda porque quasi sempre, aldeias e villas tiveram por nucleo uma familia ou duas, enfraquecendo-se a descendencia pelo mau passadio, e regress?o a um mesmo typo uniforme, de certas em certas gera??es. Outra vegeta??o implantada n'outro solo, come?ou por?m a surgir passo a passo, um dia, n?o sei quando, depois de longo caminhar. Scintillava ao largo um espelho caustico, movedi?o e sem balisas. Veio o pinhal em massas desconformes primeiro, e ap?s rareando em avan?adas, contra a grande areia relampejante das dunas. Mudava o clima, ado?ando-se de humidade salgada, dos cheiros da maresia e resinas da floresta. E sempre ante mim essa corisca??o da agua sem termo, espumando nas cristas, e tendo a bocados, mosaicos de azul e ouro. Na altura em que ia detive-me ent?o commovido, a olhar por tempo a feerica decora??o assim extraordinariamente atravessada de luz. E tirei reverente o meu chapeu, para cumprimentar o Oceano.
Esta violencia de arte embota os sentidos depressa, gastando precocemente as molas intimas dos espontaneos impulsos, da dedica??o, da abnega??o, do amor e da coragem, tornando o homem n'um s?r artificial e mecanico, com pontos de vista scenicos nos seus movimentos e discursos, desconsoladamente egoista e cynico. N?o ha for?a nervosa que resista a este abuso de vibra??o, e dias ha em que as ideias se nos varrem, uma ignorancia imbecil nos estrangula, e brumosas tristezas de carcere vem descendo aos nossos olhos e aos nossos labios, no lethargico cansa?o que chega sempre, ap?s semanas de mentalidade exagerada. Ficamos ent?o com ar de sonambulos, olhamos sem v?r, tudo doe, um desespero surdo nos tortura. E o estomago n?o digere bem, o pulm?o recusa-nos a sua mecanica de folle, o sangue ? tumultuoso, um pulso cortado de silencios, doem as articula??es, doe-nos a cabe?a, doe-nos tudo--? um aniquilamento sombrio, um odio contra livros, contra deuses e contra homens!
N'estas crises morbidas da alma na besta, nada como a intimidade das aguas, para reconstruir, para reconduzir, para repousar. Faz-se em n?s uma limpidez provocada pela serenidade impeccavel do mar, extenso e liso como um espelho magico. Quando muito ?s vezes, uma ellipsoide de espuma fervilha no dorso de alguma aspira??o mais rebelde, desejo, orgulho refreado, dissabor ou paix?o--como a vaga que destacando pura da granda massa, se orla de branco ao rebentar na praia.
Com que quieta??o interior me n?o estendi ent?o nas areias, coberto de poeira, coberto de azul e bemdizendo tudo! N?o me lembro em que ponto da costa isto foi--mas era magnifico.
Que vastid?o de paizagem, que deboche de azul, que luz irradiante!... Para um lado iam agrupamentos plutonicos, penedias a prumo, esburacando em cavernas sonoras da onda que ia e vinha, chapinhando e refluindo. Promontorios irregulares sahiam da grande mole c?r de ferrugem, em trombas que se alongavam para beber. Da esquerda, planuras de areia faiscavam em circo, a chicotadas de sol. Deante o mar, e a duna cortando a retirada por ultimo, onde phalanges de pinheiros socegadamente bivacavam. Sobre uma insula escalvada em pinaculo, o pharol sahia da agua, negro no ceu luminoso, e expandia-se na plataforma da lanterna em setteiras aluidas, com agudas torrelas nos cantos.
OS NOVILHOS
Vespera de S. Jo?o, na aldeia.
As doze pancadas do sino acabavam de dar por uma quente noite de estio, luminosa de lua e perfumada de fenos. Nada mais d?cemente calmo, que a contempla??o da paizagem de vinhas e olivedos que se gozava na ladeira da aldeia, caminho da fonte. No cimo da encosta, a fachada da egreja estendia sobre o azul pallido, as agulhas brancas das torres, onde, attenta a santidade da hora e da vespera, nem as corujas soltavam pio.
Conforme o uso, quando a ultima badalada tocou, as raparigas em cabello, capellas de jasmins no penteado, de que pendiam pequenas ameixas rosadas e peras de Santo Antonio, saias curtas garridamente enfeitadas de vermelho, p?s ligeiros e um borboletear de cantigas que envergonhavam nos campos os rouxinoes das balseiras, puzeram ao quadril as quartas de barro, e aos pares, trocando confidencias, desceram pelo corrego at? ? fonte. A fonte era o monumento da aldeia, com o seu largo boccal de fei??o biblica, boa pedra vincada pelos fundos dos cantaros, amplos cadeir?es de granito em redor para quem chegava cansado, uma dorna inclinada onde bebia o gado, e meia penumbra tremula, de chor?es e pimenteiras.
Vespera de S. Jo?o ? meia noite, a agua das fontes ? santa, santa como os remedios efficazes, como a ben??o nupcial que um velho padre estende aos noivos, como os vestidos e os bentinhos das imagens, como a cruz dos adros desertos, como os mentrastres das ermidas distantes e os cordeiros dados de foga?a pelas festas da paschoa. Quem a bebe, viva ?quella hora, junto da fonte onde o luar se espelha, e em cujo fundo dormem suavemente os reflexos das estrellas, ? feliz todo o anno, fecundo se ? mulher e bom trabalhador se ? homem.
Bom S. Jo?o, todo risonho e n?, no seu altar da egreja, cordeirinho branco a um lado, bandeirola do outro, e a polpuda m?osinha de crean?a aben?oando com gra?a innocente as cabe?as que se lhe curvam deante!...
Toca a encher as enfusas. Algumas das mo?as entravam nas vinhas a colher parras para ornar de grinaldas as cintas finas, as cabe?as loiras e os bojos porosos dos cantaros arabes. E aos pares, ondulando os quadris, iam subindo a encosta cheias de esperan?as e radiosas de sonhos, e o rumor das cantigas fluctuava no tranquillo ar da meia noite, em cuja limpidez o S. Jo?o benevolente, estendia as suas m?os cheias de promessas.
Ora a Rosaria s? desceu da herdade ? uma hora, a grande pregui?osa! E s?sinha por entre as arvores, n'uma pallidez de audacia que lhe ficava bem! Tudo no monte fic?ra a dormir, o pae estira?ado na eira, a m?e resonando na alta cama de casamento, os rapazes por cima das moreas de trigo, bois deitados por baixo das azinheiras da pastagem. Dois novilhos s?mente, quasi bois feitos, retou?avam nos fenos, pulando, rebolando-se, furtando-se os corpos vigorosos, n'uma alegria de titans em bacchanal. E todos brancos, mansissimos e perfumados, dir-se-hiam principes encantados, esquecidos dos seus palacios de oiro, n'aquella metamorphose exigida por alguma velha fada rabugenta.
Rosaria ainda esteve um bocado a miral-os.
--Diacho, disse ella a rir para comsigo, cantaro ao quadril, t?o novitos ainda, e j? namorados. E a cantar desceu a ladeira. Que luar que fazia, que silencio se alastrava!... Nem um ai de rouxinol noctivago, nem um echo de cantigas esmorecendo nas quebradas. Um pouco al?m, no cabe?o do outeiro, o portal formidavel de um dolmen negro, desenhando como um branco de olho malicioso, rebolado em fervores de lascivia. E atravessando n'um feixe esse portal, a poeirada fina da lua, vinha em aureola cercar de uma vaporisa??o phantastica, esse perfil de zagala israelita. Quando chegou ? fonte viu a clareira coberta de ovelhas, que empurrando-se em silencio, furando, cahindo e mordendo o p? que levantavam, tinham pressa em chegar ? grande pia de pedra, para beber. Em p? sobre as lages da fonte, o pastor tirava agua com um grande balde de cobre, enchendo a pia, que logo tornava a ficar sem gotta. Rosaria ergueu a voz:
--Eh l?, visinho Pedro.--O pastor par?ra de chapinhar na agua. Gritou-lhe:
--Eh l?, Rosaria!
E ambos immoveis, sem querer avan?ar, ficaram a olhar-se no turbilh?o do rebanho.
--Bonita noite, disse um.
--? verdade, fez o outro.--E um grande silencio.
--Ent?o vens ? de S. Jo?o?
--Tal e qual!
--Pois isto ? tarde por aqui, juntou vagarosamente o pastor.
Rosaria teve um sobresalto, o monte ficava longe, n?o andava viv'alma, e t?o f?ra de horas!... Ent?o olhando para si, reparou que estava em collete, bra?os n?s, pernas n?as, as primeiras redondezas do seio em evidencia. N'isto, os novilhos brancos romperam na clareira, ?s cambalhotas.
--Tambem!... disse o pastor. E sobre o lagedo da fonte, fic?ra immovel, bebendo o largo, narinas frementes, circula??o de novilho nas f?rmas athleticas que tinham ? lua, soberbos detalhes de musculatura.
As ultimas ovelhas tinham j? bebido, e ainda por duas vezes, o Pedro mergulhou na agua santa o grande balde de cobre, para encher o cantaro de Rosaria. Tremula e muda, a pobre achegava-se sem ousar fital-o, receando a primeira palavra, qualquer ousadia permittida pelo abandono do sitio. Eram quasi da mesma edade, tinham brincado crean?as, esfarrapados e trigueiros, rolando-se nas relvas com essa alegria selvagem dos que convivem longo tempo com o gado, e sem saber o imitam nas suas cabriolas. Sem o menor resaibo de amargura, a voz do Pedro disse-lhe:
--Hontem estavas a fallar com o boieiro do Monte-de-Trigo. Diz que n?o?
--Estava, sim. A irm? tem andado doente. E como ? rapariga da minha aquella...
--Olha c?, para que vieste s?, a esta hora? Diz, anda.
--Estava a dormir. E vai, fez-se tarde.
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