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Read Ebook: A cidade do vicio by Almeida Fialho De Chardron Ernesto Editor

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Ebook has 904 lines and 69679 words, and 19 pages

--Estava a dormir. E vai, fez-se tarde.

--Sabes, mo?a? Se encontrasse ahi algum, n?o o deixava comer mais p?o. N?o me salve!

--N?o ha medo, homem. ? procurar!

? medida que atrav?s as interpella??es bruscas do Pedro, ella lhe sondava os receios, adivinhando o culto em que era tida, ia recuperando socego. Sentindo-o vencido ent?o, a deixar v?r nas amea?as surdas o receio que o esmagava, era Rosaria quem fallava alto agora, pujante da sua felicidade e orgulhosa de dominar. Assim estiveram encostados no boccal da fonte, immoveis, olhando sem scintillas um para o outro, como se j? tivessem dormido. Em roda, as ovelhas ajoujavam-se aqui e al?m, fartas do repasto da noite e cansadas de cabriolar nas encostas. Vigilantes, nos longes do arraial, os dois rafeiros iam e vinham, encalmados e tropegos, fazendo tilintar enormes colleiras erri?adas de gumes, e farejando os mattos, de orelha fita, ? procura.

--J? fallei c'o teu pai outra vez, disse o Pedro.

--O anno vai mau, aventurou a rapariga, sabendo o que elle ia dizer.

--E a gente fica assim toda a vida?

--Ai, n?o! Mas quem faz casa, necessita que lhe metter dentro. Tu bem sabes, Pedro. Inda que uma creatura, sim, seja pobre, ninguem casa sem arranjos. C? da minha banda, pouco falta.

E ia dizendo, uma por uma, as pe?as do enxoval--len?oes de estopa, duas fronhas de renda, coberta encarnada, seis toalhas, dois vestidos, e camisas, uma arca nova...

O Pedro n?o ia t?o bem, n?o! Todo o anno a velha estivera de cama, algumas seis cabras mortas, a damnada inverna sem largar a sementeira, o favalito cheio de alforra. Quem nasce para burro, com licen?a, nunca chega a cavallo. E os dous suspiravam. Mas cada vez mais perto, os novilhos se perseguiam e acariciavam, n'uma febre de primeiro amor, espica?ado pela resistencia da femea, que de patas estendidas se punha ? espera que o macho formasse salto. E sentindo-lhe o focinho nas ancas, furtava de repente o corpo para deante, fazendo-o cahir nos pastos. Aquillo succedia-se por dezenas de vezes. Cansado ent?o, o novilho parava afastando as pernas, resfolegar sibilante, a baba correndo em grandes fios da focinheira, que um laivo rosa sombreava em tons de carne sadia. E de cabe?a alta quedava-se a fital-a, mugidos surdos, repassados de uma ternura physica que parecia deleitar a femea, cuja cauda voluvel a?outava de manso, a bella anca roli?a. Nada era mais lascivo, ondulante e gracioso, que a anatomia agil da vaquinha branca, orelha e narina moveis, esbo?ando attitudes de uma gra?a infinita, saltos de pequena fera, bruscas contrac??es de pannos musculares, espregui?amentos de desafio e vagas ternuras de esperan?a. E essa scena de tenta??o, que primeiro pass?ra desapercebida ao pastor, ia-lhe agora despertando atten??es minuciosas e complicadas ideias. De olhos avidos elle seguia o jogo teimoso da novilha, que se difficultava ? medida que a raiva do macho ia crescendo, crescendo. E um alvoro?o interior acudia-lhe em remoinho, fazendo-lhe bater as fontes e pondo lhe a saliva espessa. N?o era bem Rosaria, a imagem com que elle, mentalmente, reproduzia a scena que estava vendo. Deante da rapariga, as suas audacias de homem quebravam-se, e as suas raivas de novilho mordiam o freio de uma virgindade montanheza e feroz, que os tinha defendido a ambos da culpa. Era sim, uma femea meio mulher meio vacca, constructura toda animal, harmonica com o seu instincto brutal de pastor, capaz de sentir e incapaz de pensar, vida rudimentar em corpo de redondezas duras e contactos bovinos, imposta pelas fatalidades da procrea??o. Rosaria que se contrahia sob a descarga das fulvas scentelhas, que saltavam dos olhos d'elle, dilatados em colera sob sobrancelhas frementes, teve um medo algido a invadil-a toda. E ao mesmo tempo, do fundo do seu s?r e do cora??o das mais pequeninas regi?es do seu corpo, um esbrazeamento, uma angustia, uma incoherencia de gozos innatos, subiam-lhe ? epiderme, alargando-se, chispando, occultando as suas vibra??es fulminantes sob a mascara da tranquilla postura que tom?ra.

Pedro cheg?ra-se mais contra ella. Os novilhos tinham-se enla?ado afinal e rolavam nos fenos, mugindo no exhuberante prazer de uma for?a esbanjada. Ent?o Rosaria que o encarou de face, viu-lhe bem a rijeza das f?rmas negras, o tronco arquejante, que pinhas de musculos disformes enfloravam, a redondeza n?a dos deltoides cinzelando-lhe magnificamente os hombros de titan, bicipedes formidaveis contrahidos sob a tortura de um desejo esmagado, e na rude face de fundibulario celta, uma rigidez que apenas de longe em longe, o fulvo corisco das pupillas conseguia desmentir. Ella n?o p?de mais, e na meia nudez em que viera, atirou-se-lhe contra o peito, beijando d?cemente esse bronze latejante, mesmo sobre o cora??o. As m?os de Pedro apanharam-na pelas esp?doas e cingiram-na pelos rins, hesitantes n'um delirio que o fazia cambalear como um touro ferido entre os cornos, e n?o sabendo se cingil-a at? lhe fazer estalar os ossos, se arrojal-a l? para o largo, onde a n?o visse mais n'aquelle abandono desleixado.

Aquillo durou um instante, no final do qual os bra?os do hercules tinham novamente cahido, a iris fic?ra tranquilla e toda essa torre cess?ra de tremer.

--Adeus, disse-lhe elle um pouco triste. E baixo, n'um segredo de infinita ternura, em que chorava a rude voz, transfigurada pelos ardores da juventude:

--Quando formos casados, sim?

Agarrou no balde, esteve a enrolar a corda ? cintura por um bocado, metteu dois dedos na bocca para assobiar aos rafeiros. E voltando as costas ? fonte, poz-se a arrebanhar as ovelhas, enxotando-as com o grande cajado, pelas pastagens acima. E mais al?m a sua voz de montanhez cantava j?, n'uma toada dolente, em que transparecia a tenacidade de um mesmo amor, idealisado por uma vida inteira de esperan?as e sonhos castos.

E alli mesmo, esfaimada como uma bacora, Rosaria se entregou.

NOITE NO RIO

Lia n?o tinha nada da esculptura antiga, linhas consagradas de modelo napolitano, seios altos, tinta ba?a, nariz grego, cabe?a de Juno, onde torvelinhassem cabellos de noite. Era uma rapariga t?o fresca como uma crean?a e t?o branca como uma camelia. As linhas do seu corpo instrumentavam uma symphonia purissima, sem relevos superabundantes ou energias lubricas. Musical, toda essa organisa??o de que um tepido perfume de morbideza excentrica, se escapava em risos, sobresaltos e can??es! Sob a colora??o da sua pelle luminosa, t?o fina que me dava calafrios ao contacto, e sob a fragilidade etrusca da sua cinta tenra e dos seus punhos magnificamente moldados, ninguem podia sonhar sequer a tenacidade altiva, a rija vontade e teimosia d'esse espirito jactitante, todo incoherente de pequenos requintes e anckilosado dos mais estranhos prejuizos. De feito, era necessario vir de uma ra?a atormentada e tenaz, grandiosa na sua miseria e filtrando por seculos sem numero, atrav?s dos cataclysmos da terra e das maldi??es do Deus irado, hoje errante nas asperezas do captiveiro, depois prosperando sob os reinos da edade gothica, ap?s azorragada para o exilio, logo entregue ao carrasco e ? fogueira, roubada, espesinhada e maldita, para assim engastar como joia rara, no fragil involucro de um corpo adolescente, esse genio caprichoso, que parecia tecido dos v?os da andorinha, do angelus de Massenet, de gottas de luar, e do travor bravio dos fructos silvestres, genio que era bom e mau ao mesmo tempo, luminoso e negro, leve, rhythmico, vivo at? ? doidice, mas que por vezes, vinha bater a aza de uma melancolia negra--talvez a hereditaria saudade d'essa patria ideal, perdida na bruma dos longiquos continentes, onde contemplativas repousam as ruinas dos templos, sobre cujos capiteis destroncados eternamente dorme a sombra do Sinay!

Pela agua irritada de fremitos, a guiga corria em silencio, f?ra do quadro aduaneiro. Lia tivera a ideia de uma pescaria nocturna, que nos furtasse n'aquella noite de Casino, ? convivencia de banhistas pretenciosos e mulheres fatigadas. A noite estagnava n'uma quieta??o abafadi?a, sem brisas e toda uniforme no seu lucto. Da cidade, o gaz tra?ava na sombra como um plano de edificio monstruoso, pontua??es vermelhas que se alongavam em formidavel escala, desde a Torre de Belem cravada na ponta de uma linha arenosa e curva, at? ? outra balisa, que o accumulado das casas de Alfama parecia occultar. E de tamanha fabrica, vinha um fervor de respira??o convulsa, que ? fl?r da agua se afinava com subtilezas acusticas, estremando cada ruido na sua grada??o, e decompondo por espa?os atrav?s dos sons, toda a vida complicada da cidade, desde o hausto de uma valvula de fabrica, at? ao grito indistincto de um vendedor de jornaes. Olhada assim de longe, d'aquelle fundo de sombra salgada, Lisboa tinha o ar de uma grande cidade entregue ? nevrose tragica do vicio, pois que se apagavam na noite as frontarias dos edificios burguezes, as architecturas hybridas dos palacios e dos templos, a uniformidade das ruas geometricamente alinhadas, e no tremeluzir dos lampe?es se podia evocar alguma d'essas necropoles torvas, onde as festas resumiam a vida, as carnes das mulheres se cobriam de lhamas de ouro em purpuras radiantes, a musica embalava a embriaguez dos soldados e capit?es, e do homem nada vivia sen?o a besta, tripudiando em concupiscencias phenomenaes.

Em meio do rio e nos torvos concavos na nevoa gordurosa, esgar?a aqui e al?m pelos caprichos do ar e da noite, os barcos ganhavam dimens?es temerosas, e de vela frouxa sobre as varas curvas dos mastros, faziam pensar em azas mortas de albatrozes escorregando na agua negra, que se ia somnolentamente contra o mar.

? for?a de prescrutar as sombras, a retina falseava as imagens alargando-as, enchendo com ellas os ares, fazendo-as mover entre crepes n'um rhythmo funebre, e esbo?ando assim carv?es rembranescos, d'uma energia desconforme. N'esse pavor do negro, perdia-se ao leme o perfil de Lia, n'um fugitivo albor, immobilisado em singular recolhimento.

Essa radia??o de mulher adolescente transfigurada ao calor de um homem, ganhava de subito energias do deserto, reminiscencias de estado barbaro, sensualidades tigrinas, cujo ardor a agua do baptismo parece ter resfriado nas christ?s. E como faisca espadanando no embate violento das fragas, aquella linguagem mesclada, indefinivel, obscena talvez, e encantadora, fazia-me lavas no sangue como um ultimo requinte de voluptuosidade!

E a guiga vogando manso, como n'um peda?o de lenda rhenana, sem ruido, tendo a mulher de negro ao leme...

Evitavamos os navios ancorados, como conspiradores em perigo; uma vez ou outra por?m, tinhamos de contornar alguns d'esses cetaceos immoveis, que affrontados pela pr?a pareciam crescer desmedidamente nos ares, multiplicando a confus?o de vergas, escadas e cordagens, e accendendo pelos oculos das camaras, fulgores sanguinolentos de olhos estoirados, sem movimento e sem palpebra.

--E a pesca? disse Lia, em voz baixa. Aproxim?mo-nos da outra margem. Cahiam de cima as arestas dos montes, fazendo trevas na sombra. A mar? descia vagarosamente, embalando no dorso das ondas alastramentos de algas verde-negras. Accendi ? p?pa um archote, e fizemos alto. Em volta, a chamma abria uma photosphera geometrica, raios que se quebravam na agua, torvelinhando em r?des de sangue, e na penumbra da noite se amorteciam, ? medida que se alongavam. Immovel no seu banco, Lia tinha a cabe?a distrahida, envolta n'um froco atado por baixo da barba, a narina quieta, e uma serenidade de face a cada passo desmentida pela caustica dos seus olhos de hebr?a.

--E a pesca?--foi em toda a noite o unico portuguez que disse, n'um fluido de abstrac??o monotona, sem sentido e sem alma, com voz que era antes um echo. Nem um instante por?m, esses olhos me largaram, spasmos n'um deslumbramento de luz, a principio tranquilla e d?ce, depois tenaz, depois feroz, e inquietadora por fim. N?o sei explicar, nem ha coisa alguma que o explique, por que vibra??es infinitesimas iam passando as fibrilhas d'essa iris, que dentro de mim illustrava com illuminuras divinas todo o fulvo poema de uma paix?o selvatica. Parecia-me, na incoherencia em que oscillava, o seu amor uma serpente que se enroscava frenetica a mim, inoculando pe?onhas no meu sangue e loucura no meu cerebro, invertendo a polarisa??o dos meus instinctos e contaminando a nobreza dos meus ideaes, tornando-me feroz, grosseiro e cobarde, e deixando pela algidez da minha vida, um rastro de maldi??o e estupor! E por mais esfor?os que fizesse, a contempla??o d'esse typo de Herodiade, embara?ava-me, can?ava-me, fundia-me! Em pleno rio e longe do bulicio, a sua figura transfigurava-se de immovel, e atrav?s d'ella eu via irem desfilando em prociss?o phantastica, tunicas de linho ao vento, cabellos ornados de sequins, e olhos de terrivel belleza, todos os estranhos typos da judia lendaria, desde Maria, a suprema innocencia, at? Thamar, a suprema culpa!

--E a pesca? h?o de os senhores perguntar. Bom Deus, nem me recordo!... Nem sei inda agora explicar, porque o archote se apagou sem n?s sentirmos, e o primeiro sol nos veio surprehender abra?ados no fundo da guiga!

Oh! a deliciosa pescaria!...

ABANDONO DO POMBAL

Chegaram ? villa j? noite, em tropel, chailes nos bra?os, tran?as cahidas e bra?ados de fl?res, um remoinho de palavras e risos, que n?o era j? palestra, mas lhes vinha como resultante d'aquella avigorenta??o de seiva e mocidade, provocada pela travessia dos campos. S? em casa, ella reparou que molh?ra as botinas, tinha a garganta presa, e por vezes sentia um peso estranho de cabe?a.

--? fadiga do passeio! dizia a rir, contando a alegria da festa, os promenores dos bailaricos e a garridice sem exemplo do Santantoninho da ermida. Precisava por?m de ouvir-se para estar bem, e a cada silencio sem saber porque, cerravam-se-lhe as palpebras, a espinha dorsal cahia-lhe dorida, e uma tristeza vaga, feita de estupor e devaneio, entorpecia-a toda, em narcotismos de banho russo.

Foi agitado o dormir, essa noite. O Santo Antonio tomava-lhe no sonho dimens?es colossaes, e de olhos estoirados, barretina na cabe?a, corria a amea?al-a com a cruz, bramindo com a sua rude voz de pregoeiro.

N?o podia estar na cama, voltava-se, sentava-se, bebia agua, e vinham-lhe oppress?es teimosas, pasmos fugitivos, um tremor febril de membros. Por duas vezes cuidou que estava um vulto embu?ado aos p?s da cama, a encaral-a do fundo de um grande capuz negro, barba fulva, onde lagrimas corriam.

E de manh?sinha, annunciou-se a tosse, a grande fadiga continuava, e um fio de sangue correu-lhe a um canto da bocca. A m?i fizera-se branca ?quelle terrivel signal, que ia dizer com outro mais terrivel ainda, apparecido no dia anterior sobre o leito da pobre pequena--uma pennita de pombo, toda negra, immovel sobre o travesseiro.

Queriam dissuadir a pobre velha e chamal-a ?s coisas praticas, n?o haveria nada, tolice acreditar em signaes... Mas os olhos d'ella, fitos no pombal n?o viam sen?o esses casaes brancos ou cinza, alguns manchados de c?res, alguns de pesco?o irisado, dois ou tres todos negros, enormes como corvos, arrulhando altivamente nos beiraes da casa, voando contra as ventanas do pombal, ou vindo a espa?os bater nas vidra?as, com azas funestas, de que abalavam ao vento, pequeninas plumas agourentas.

--Os pombos, os pombos!... dizia n'um fundo d'assombro a pobre, como se ante ella surgisse alguma evoca??o pavorosa.

Dia agreste, cheio de incertezas no alto, com alternativas de sol e contramarchas de nuvens, que muito baixas, deixando farrapos pelos cabe?os, a espa?os truncavam a cordilheira, embaciando a transparencia viva das verduras. Nos esqueletos das arvores punha a rajada volita??es de folhas, vinha um frio doloroso dos longes; e por massas, na opacidade do ar, troncos cruzados, ramadas vibrantes na symphonia dos ventos, toda a confus?o regelada dos bosques que v?o rebentando a medo, davam uma sensa??o de amargura e d'abandono. Como iam grossas as aguas por esses barrancos e corregos, alagavam-se os terrenos baixos, exhumavam-se radiculas tortuosas c?r de ferrugem, das barreiras que resistir queriam ao turbilh?o, e vinha das relvas zurzidas pela enxurrada, das attitudes contrafeitas e bruscos gestos do arvoredo, uma fadiga imbecil e attonita d?r, que quasi trahiam impotencia. Terrenos f?ra alastravam-se ainda calvas aridas, bocados de ch?o velho hirsutos de cans vegetaes, aqui e al?m pintalgados de germina??es timidas, pallidas, finas, caminhando em fil?es, com o effeito de pinceladas ao acaso. Por toda a banda come?ava o cevar de hyena, da herva nova que se lustra, engorda e alimenta do cadaver da herva velha, e em vaidades de debochada, a vai pisando, humilhando e roendo, com uma especie de implacavel ciume.

Cada pequenina folha rebentando, trazia ao mesmo tempo, herdadas lascivias secretas, como uma ancia nupcial que alongava os peciolos em pesco?o para os beijos do amor frenetico, revirava os apices como linguas ? descoberta d'alguma nova sensa??o, irritando em titilla??es mysteriosas sobre os reversos das folhas, as villosidades e pellos, no doido prazer esbanjado de uma kermesse. Do entresolo dos bosques vinham susurros de catadupas, azenhas trabalhando, gemidos de caules vergastados, ou ultimos idyllios de folhas outoni?as que esvoa?am j? mortas. N'essa transi??o de quadra, a natureza chorava melancolias lyricas, e se o bocejo da nevoa rasgada, deixava contemplar por momentos algum flor?o de ceu brunido a reverberos de sol, viam-se no azul pallido, sobre o engaste do horisonte, os dulcissimos furta-c?res que teem certos n?s da madreperola, tons de nacar, junquilho, turqueza e oiro, fundindo em maravilhosos reflexos.

Nas setteir?s da grande chamin? provinciana, larga e alta como um torre?o de solar, o vento bramia em todos os tons, da raiva ? supplica, querendo a todo o transe assaltar a vivenda, implorando, dizendo segredinhos, batendo pancadas humildes, e quedando-se ap?s como salteador, na esperan?a que fossem abrir.

De noite, uma chuva batera as vidra?as e cahira sonoramente nas telhas, sob os golpes da ventania inclemente. Tempo que desalentava os trabalhadores e embebia de tristuras a alma fragil das mulheres!

Pelos vidros da alcova, via-se um bocado do jardim, pimenteiras verdes fazendo oscillar ao vento o seu pranto de folhitas oblongas, eloendros sem fl?r, cedros an?es, pyramidaes e bojudos, canteiros de anemonas, rainunculos, goivos, rosaes e alfazemas, toda a flora chinfrim dos quintalorios de provincia. E alongando os olhos, Maria de Jesus via mesmo deitada, os queridos arbustos que os pardaes debicavam, e todas essas fl?res mal abertas, que nos canteiros punham mosaicos de irregulares coloridos.

A casa ficava d'alto, sobre uma ondula??o dos saibros, por f?rma que das janellas acima mesmo da parede do quintal, podiam dominar-se todas as perspectivas agricultadas do valle. Eram renques de castanheiros ? orla do rio barrento, que a planura repartia em veigas ferteis, laranjaes, olivaes, latadas e quintarolas cingidas por sebes de piteiras e sabugueiros, cantos de courella onde pascia a indolencia fulva dos bois, jumentos e ovelhas roendo pellugens nos vallados. Mais para l?, grandes amphitheatros de outeiros, hirsutos de matto e crenelados de penhas lugubres, armavam escadarias de cyclopes contra a nevoa ondulosa dos ceus--e nitidamente cortados em brancos de cali?a violentos, sem claro-escuro, fins de aldeia iam-se esbatendo nos primeiros planos, collina abaixo, casas terreas com chamin?s sahindo em torrella das frontarias, esbracejos de parreiras por cima dos muros, medas de azinho e serras de palha em cathedral, carros de matto erri?ados de fueiros, port?es de adegas com mariolas provando o tinto, mulheres fazendo meia nos poiaes das portas, gallinhas e porcos revolvendo as estrumeiras podres, ruidos de bigorna, cantos de gallos, e no cotov?lo da estrada, j? distante, dois paus em cruz historiando um assassinato.

No quintal, por cima do palheiro, a um lado, havia um mirante com balaustrada de lou?a, a que se subia por uma escada de tijolo, orlada de craveiros e cachos de fuchsias. Entre palheiro e mirante era o pombal.

A cama da doentinha ficava n'um angulo da alcova, e por entre as cortinas podia ella, mesmo deitada, alongar a vista contra a residencia das queridas aves, que em grupos na cimalha do mirante, nos angulos do telhado, ou ? porta das pequeninas moradas, se agachavam tristes, pennas em tufos, cabecinhas debaixo da aza, ou bico alto, espreitando a hostilidade parda do ceu. Um ou outro pombo audacioso voava ?s vezes por cima do mirante, em arrulhos timidos, saltitando nos balaustres, cauda em leque n'um gracioso movimento de subida e descida, e esse debicar de volatil ocioso, que procura distrahir-se fazendo mal.

A rajada por?m fazia-o volver logo ao ninho, impotente para o v?o, de cabe?a baixa e azas molhadas. Mesmo tossindo, face irritada de rosetas funebres, guela secca de febre, Maria de Jesus seguia as sortidas dos seus amiguinhos, cheia de d? porque elles soffriam.

D?ces e tristes, os olhos da velha m?i reconheceram na treva, a aza do pombo negro fatidica e implacavel, a que o indeciso da noite dava propor??es desmesuradas. A tremer chegou-se ? filha, viu-lhe um riso suavissimo, espiritualisado de angustia e todo luminoso de innocencia. Cahira o arquejar da respira??o, as palpebras cerravam-se-lhe repousando, e no desenho do corpo indeciso nas penumbras do quarto, a pallidez da cara s?mente, punha em redor o divino clar?o de uma aureola de martyrio.

--Os pombos! tornava surdamente a velha, os pombos!...

E era toda a sua queixa.

Pelo dia seguinte a esperan?a estava perdida. Os tecidos flaccidos abandonaram-se a uma lassid?o tenaz, sem resposta a estimulos de qualquer ordem. Mal se sentia a respira??o da doente, e como um pendulo que faz em cada vez oscilla??es de menor arco, assim o impulso do cora??o, successivamente enfraquecia. Ao chegar de manh? o velho doutor Patricio, inda sentiu sob os dedos nodosos, o pulso vermiforme que ondulando fugia n'um fio tenuissimo. ?s dez, a onda partida do cora??o era menos viva j?, e mal chegava abaixo do cotov?lo.

Corriam ao appello os velhos amigos da casa, e as santas mulheres que tinham visto nascer a pobre Maria. E um ch?ro cortado de lamentos, enchia a casa, fazendo alarme nas ruas. Alguem not?ra desusada actividade no pombal. Os chefes entravam pelas casinholas e picavam raivosamente as femeas no agasalho do choco, fazendo-as abalar dos ninhos; e em revoadas doidas por cima do mirante, a turba frenetica afugentava alguma coisa dos ares, parecendo perseguir um inimigo occulto, sem arrufos, sem arrulhos, mas por uma f?rma incansavel. Na vertigem da debandada eram profanados os ninhos, rolavam os ovos do alto, ou vinham-se esmigalhar nos tijolos da escadaria os pobres borrachos, brutalmente investidos pelos paes. Por vezes toda a buli?osa legi?o pousada nos cimos do mirante, armava linha de batalha com gra?a marcial, em que faziam mosaico as armaduras de plumas dos peitos, e o furta c?res dos pesco?os levianos. O pombo negro, que dir-se-hia ter crescido pela noite, parecia commandar o veloz regimento, e no extremo da fileira, cabe?a alta e olhos inquietos, estudava o horisonte tumultuoso das nuvens, que um dardo de sol ensanguentava a espa?os.

Ia pela abobada uma decora??o dantesca, profusa em contrastes de negro e branco, com fumaradas errantes que o vento acossava de onde a onde. Por instantes condensada em cupula, ou rachando em zig-zagues de oiro sob o choque dos bulc?es em peleja, uma felpa de negro electrico, pastelava amea?adoramente a amplid?o, n'um tom unido azul d'a?o, felpa que era como o grosso do invencivel exercito de nuvens. N?o havia ainda trov?es, e o ar rarefeito transmittia sons difficilmente. Al?m d'isso, dava-se nos s?res e nas coisas uma suspens?o de assombro, recolhimentos de plateia ? escuta d'um lance tragico.

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