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Read Ebook: A Primavera by Castilho Antonio Feliciano De

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Ebook has 387 lines and 90699 words, and 8 pages

OBRAS

Antonio Feliciano de Castilho

A PRIMAVERA

POR

ANTE-PROLOGO.

Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas horas ao de cima d'estas fantasias, e antes de se me apagarem, se j? he que isso tem de ser, alegrar com o seu reflexo estas paginas, que mal poder?? ser muitas: sempre he cedo para lan?ar pelas janellas f?ra os brinquedos de nossa puericia; e mal haja quem o faz sem que todo o cora??o se lhe aperte dentro no peito.

A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente lhe d?o nome, pastoril, com ser de todas a mais antiga, nunca em nenhuma parte se perdeo, dado em muitas decaisse n?o raro do seu credito e lustre; e segundo todas as mostras, deitar? ainda at? ao fim das idades literarias. Sempre mo?a como a terra sua m?i, mansa como os arroios seus irm?os, formosa como as flores que lhe guarnecem o chapeo de palha, livre e leve como os zefiros pela assomada dos montes, alegre, namorada e innocente como as aves na madrugada do anno, he de ver qual se vai sozinha e vivissima por entre tantas couzas mais fortes que morrem; com o seu cajado de pastora, segura entre tantos inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle bem vinda; vingando e vencendo todos os seculos; dando a alguns d'elles de mais amoravel indole a sua propria f?rma; e relevando-lhe, ainda os mais ferozes e guerreiros, que lhes ella misture com a sua frauta do ser?o os himnos da guerra, lhes entrete?a maliciosa violetas com os louros, e os campos que elles a ferro e fogo devastar?o os repovoe ella de imaginadas verdura, flores e felicidade.

Hum curioso reparo poder?? ter feito os que os fazem no ler poetas, e he, que apenas haver? algum dos chamados Epicos, para quem o campo e sua vivenda n?o fosse deleitoso assumpto. Compraz-se Homero de travar com as fa?anhas dos heroes toques e pinturas do viver natural e primitivo; Virgilio, que ja primeiro que se abalan?asse ?s armas e guerras tinha cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, particularmente se recreia quando no meio das batalhas pode a uns e outros mandar algumas saudades; nos dois Orlandos e em todos os livros de cavallaria, vai igual mistura; o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia escrito o Amintas: e d'entre os nossos, para por todos citar um, mas um que por todos valha, Camo?s, n?o s? afamou os Portuguezes sujeitadores de elementos e homens, mas todo se deleita em conversar os pegureiros e campos da nossa graciosa Lusitania, terra cujos filhos, se me n?o engano, s?o por indole dotados destes dois extremos, de brandura e de valor, de amor ao obscuro rusticar e ao glorioso correr de aventuras e perigos: por onde entendo que para muito mais do que s?o os fizera Deos, assim como fizera para muito mais do que he o grandioso torr?ozinho que habit?o.

Disse engenho subtil, e bons juizos cr?r?o, que o desejo, ancia e esperan?a de bem que todos temos innatamente, era claro argumento de uma vida futura, ja que nesta se nos n?o deparava contentamento: assim tambem dissera eu, que este natural e universal gosto ? poesia amena he um indicio de que, se jamais o homem foi homem e ditoso, la nos campos o foi; que as plantas d'onde nos brot?o sustento e recrea??o, exhal?o secretamente amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos valles das idades patriarchaes, em quanto os bosques n?o ca?r?o para em sua vez se levantarem as muralhas, as ben??os do ceo orvalhav?o muito mais amiude. Alguma couza far?o para aqui palavras do meu Florian, que porque d'elle s?o as verterei de muito boa mente--"Oh se n?s podessemos ler em seu original texto os bons autores d'essa Allemanha, enlevar-nos-hia a tanta singeleza, a tanta do?ura por onde de todas as outras se estrem?o suas obras! Em conhecer a natureza, e especialmente a natureza campezina, lev?o-nos elles uma infinita vantagem: am?o-na mais deveras, retrat?o-na com tintas mais fieis. Todos nossos poemas pastoris nada tem que ver com as meras traduc??es de Gessner. Ninguem jamais fecha a Morte de Abel, os Idyllios ou Daphnis, sem ja se sentir mais soffrido, mais terno, mais mavioso, e porque tudo diga, mais virtuoso que antes da li??o. N?o respira sen?o moral pura e facil, e virtude d'aquella que logo vem trazendo bemaventuran?as. Fosse eu parocho de aldea, que sempre ? esta??o da missa havia de ler e reler Gessner aos meus fregueses: e por certissimo tenho que todos meus alde?es se fari?o probos, todas minhas parochianas castas, e ninguem me havia de ao serm?o adormecer."--

Quando de espa?o me dou a escavar estas verdades, nada me assombra a nossa crassa e desdenhosa ignorancia, m?i ou filha, e certamente socia da nossa immoralidade. Esta mal agoirada ignorancia e esta immoralidade crescer??; ja nossos filhos apenas saber?? ler, e se o turbilh?o que a roda leva n?o houver quem o suspenda, brutos e ferozes sair?? os netos. Applicai todos os vossos sentidos ao cora??o da nossa Cidade: se a vida he movimento, ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de ter um perfume, uma harmonia, ahi n?o ha sen?o morte, e aquelle movimento he de cadaver que fermenta para se dissolver. Poesia, verdadeira poesia ja n'este Reino, onde em todos os tempos pullullava espontanea, posto que raro amadurecesse, ja por consequencia acabou: quanto desde hoje se poetar nas enamoradas do?uras da vida alde?, mais n?o ser? que recorda??es sem germen de futuro. D'entre a memoria e o espirito, n?o da experimental convic??o do poeta, nascer?? esses versos, como lagrimas de balsamo, que n?o de dentro da arvore, mas d'entre a casca e o libro vem raras gotejando, para cairem e se perderem no terreno bravio da solid?o. Oh Liberdade, Liberdade! qu?o mal te comprehendem os que te separ?o do bello! qu?o mal te servem os que te malquist?o com os homens de bem! como involuntariamente te lev?o ? morte os que s? te pedem como summa felicidade, o direito de nada respeitar, estradas de ferro, navios de vapor, um himno, e punhaes ou carceres contra quem quer que n?o beber ?s suas mesas! Pobre Liberdade, n?o he este ainda o teu dia: n?o ?s tu idolo de selvagens, mas Divindade benefica de homens prudentes.

Eis-me outra vez com a Politica, e o meu voto quebrado. Ja vejo que a minha cura n?o est? t?o adeantada como o eu suppunha: n?o ha remedio, amanh? releremos Silvio P?llico, e por hoje voltemo-nos com toda a diligencia a rematar, como quer que seja, este escrito.

S?e pois o presente livro por todos os modos extemporaneo, ja porque a esta??o nem he d'elles nem para elles, ja porque lhe fallec?r?o dias para amadurecer e sasoar, e ja porque dos que lhe tomarem o sabor, uns o taxar?? de tempor?o, outros de serodio, sendo que uma e outra couza he elle, e demais a mais p?co, segundo a planta de que se creou. Uma s? lembran?a me consola, e he, que assim mesmo ja deveo ser peor, quando da primeira vez appareceo, e mais lhe n?o falt?r?o gostadores; tanto he assim que nunca faltar?? simpathias ao que de sua origem he bom, ainda quando desbotado e estragado pela impericia de quem o tratou. Melhor he hoje do que ent?o era; n?o porque o eu tornasse ? forja e ? bigorna, ou o recorresse e lustrasse com esmerada lima, sen?o porque havendo hoje menos dados ? li??o dos livros, e em especial d'este genero, tambem ja n?o ha criticos, sen?o he para as ac??es da vida publica e domestica; por onde as obras escritas podem passar a seu salvo, sem que suas pobrezas e vergonhas sej?o vistas e apupadas na pra?a. Desconsolada consola??o he esta de se poder desafinar cantando, por se cantar entre surdos: mas esse mal, se o he, s? a mim me toca, e para o descontar me sobra a lembran?a, de que alguns caladamente me agradecer?? o diverti-los do publico espetaculo. Para estes em boa hora s?ia e sai o livrinho fallador de campos e amores: suave appare?a como a violeta sozinha encontrada no passeio de inverno: suave e n?o estranhado como o raio de sol por cima de campo de batalha apoz uma noite de geada; nada aproveita elle aos cadaveres, mas alegra e consola como esperan?a aos que mal feridos jazi?o, e a quem o regelado lentor das trevas coalhava o sangue, desesperava as dores, tranzia os ossos, e os descoro?oava da providencia.

Ramalhete he de flores silvestres que a meus amigos deixo na hora do apartamento, que ao menos em quanto durar lhes recordar? que os amei. Terra de Portugal e outr'ora de Portuguezes, terra namorada do mais formoso ceo, terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada de verde e bordada alcatifa, amorosamente abra?ada do Oceano, talhada e regada de t?o espelhados rios, terra de tanta poesia e de tanto amor, eu te deixo! E para que ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, me cuides de ti esquecido, terra do meu Portugal lembre-te que o meu ultimo pensamento ao sair das tuas praias foi o da tua Primavera e o da minha Mocidade.

PROLOGO.

He o reparo e a d?vida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a seu proprio autor, n?o havia porque de novo o semear em p?blico, antes importava p?r todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d'elle se fizesse men??o; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o m?o; ou ? caridade natural comsigo proprio, expondo-se sem f?r?a de obriga??o a menoscabos, se n?o injurias.

N?o quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto n?o ha melhor, ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem tratos e s?lto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e ei-los aqui.

Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que fui, sou, e hei de ser, do que s? pelo que sou; porque nascendo-nos o presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem diverso, o futuro, o sermos s? conhecidos pelo que somos n?o he sermos conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o explicar?. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo de que o n?o parecer?.

--"A maior desgra?a da cr?tica, ainda quando se n?o sae com ignorancias e velhacarias consiste em sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte: ahi est? porque nunca se p?de avaliar um livro com exac??o antes da morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido desde o primeiro at? o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se lhe fazi?o mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento que tra??ra tem de ficar incompleto para sempre como a S? de Colonia, e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura, lan?ar-lhe-h?o ? conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo v?o por tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as m?os, e ja talvez para se arrematar mais n?o faltava que uma s? pedra: ora por aquelle v?o, he que a cr?tica se mette e entra, quer o autor esteja vivo, quer defunto."

"De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si produ??es, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que he, tem primeiramente sua base por onde se come?a; depois um cume onde se chega; ultimamente la por dentro um motivo, ten??o e fim particular para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle homem na sua produ??o."

"Parece-me portanto que nunca dev?ra a cr?tica requerer de um poeta, sen?o as obras de sua idade; e bem sabemos n?s como o faz ella sempre ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um engenho as dos annos que ainda n?o vingou, ou as dos outros annos que ja deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o periodo d'onde dimana, nunca a impertinencia dos juizes a d? por cabal: s?o uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a cr?tica a cada pedra de per si, ao passo que ainda se est? guindando, sem advertirem que aquella pedra s? assente e junta com as outras pedras he que ha de dar prova da tra?a e desenho geral do archit?to: s?o como uns pomareiros esquipaticos, que n?o tomando em conta o inalteravel fio das quadras do anno, pedem fruta madura ? primavera, frutos verdes ao ver?o, e ao outono flores."--

Bem haja Alexandre Dumas, que t?o artificiosa e claramente me decifrou, e me ajudou a p?r em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas.

Toda a Musa em crean?a padece dispepsia de versos, diabetes diss?ra quem se menos prez?ra de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume, e por muitas ras?es, das quaes n?o ser? a mais fraca a avers?o ao trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que de corr???o e primor: cora??o e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a penna lhes obede?a, como se ella podesse; for??o-na, e dahi resulta que pensamento ou aff?to que l? dentro era soberbo, apparece c? fora frio, mesquinho, desengra?ado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que s? este he verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos de cada idade s?o della, e desso?o e descontent?o a todas as outras, tem por si o serem d'ella, e como taes se defendem por conterem verdade e pintarem o homem; n?o assim a lingua, que em todas as idades he ou deve ser uma, n?o provando outra couza o faltar-se a ella, sen?o que se quer fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d'essa quasi infancia poetica, as couzas nem me espant?o nem me offendem, ainda quando as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo ca?r as faces; e por isso que he escolho em que naufraguei t?o desastradamente, o assignalo com tanta miudeza e teima; nem can?arei de o assignalar e accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros, que nem por idade se absolvem, esbarrar n'elle e perder-se a todas as horas. Mancebos, v?s que encetaes a mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz ? fama, seja qual f?r o genero de poesia para onde propendais, seja qual f?r o vosso n?o vulgar engenho, sej?o quaes forem os louvores que os velhos na arte vos conced?o, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, n?o vos deis pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, dur?o com toda a f?r?a que a natureza e a pratica lhe bafejar?o. Deve-se compor de espa?o, consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a chamar dez vezes ? unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se n?o f?ra cego, ter-nos m?o para nos n?o sairmos sen?o a horas;

Muito mais vale come?ar jornada com dia claro, do que, para adeantar horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os trope?os s?o faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final lan?adas as contas nos far?o chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar que demand?mos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo ser? de s?bra, o que ja por semelhante occasi?o disse em outro meu livrinho, contra esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente gafados; n?o ha mais remedio sen?o soccorrermo-nos aos livros mestres de nossa lingua. A avers?o que v?s outros, gente mo?a, lhes tendes, bem sei d'onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para v?s como rio caudal os livros d'essa Fran?a, todos especiosos e doirados, todos galhardos e lou??os, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paix?es fortes e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos ? uma embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer, mancebos como v?s mesmos. N?o ja assim os nossos patrios autores: estes n?o vos s?em ao caminho; pouz?o, antes jazem, pela escurid?o ?rma das bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados no p?, meio devorados dos bichos; se os olhais por f?ra, parece-vos que a vida vos n?o daria para um s? volume: se os consultais por dentro ja os titulos vos n?o namor?o, os indices vos descoro?o?o: folheai-los por alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou ch?, a poesia enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo, os costumes castos, a moral severa, a f? religiosa e inconcussa: cada pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro do mundo velho: mas esfor?ai, affazei-vos por alguns dias a soffr?-los e comsenti-los; continu?-los-heis sem tedio, logo com g?sto, com ancia, reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havi?o mentido, como pelo meio e fundo d'aquelle enganoso dissabor andav?o sumidas galas, joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativ?o a vontade, e fazem que vos peze do tempo que os n?o conhecestes. Assaz nos divertimos do caminho, ras?o he que a elle nos tornemos.

At? aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver do outro genero, em que me n?o he licito bolir, por serem essencia do livro: er?o aquelles no tocante ? lingua, estilo, e metro, que ainda que importantes, n?o pass?o de accidentes da obra; estes s?o da alma, vida, e pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo Descritivos se cham?o em geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. N?o he comtudo bem assim, porque as descri??es, por mui formosa e naturaes que se ostentem, tambem can??o a imaginativa de quem l?, quando umas ?s outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de narra??o, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna, separando-as ao mesmo tempo, para que se n?o confund?o, nem se afrontem, nem esmore??o. N?o o advertio Del?lle, e d'ahi procedeo n?o bastar seu altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro he quasi um embrechado massi?o de descri??es; e assim, se o posso dizer, mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas ser?o ao menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum pre?o por fineza de tintas, ou pontualidade de desenho? autos s?o em que me n?o compete dar senten?a. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo, disse que eu n?o pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e ainda pe?r, se devesse dizer da m?r parte de nossos poetas; mas n?o he contra elles, sen?o contra mim s? que eu enfeixei varas no princ?pio d'este prologo: como os applicados novi?os se n?o enganem comigo por minha culpa, que se desvairem e perc?o com os outros, paciencia! Aqui est? comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de c?res pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo, como de si dizia Kleist, ca?adas poeticas de imagens, nem discorr?-los como Gessner, de lapis na m?o. Ja p?de ser que o Padre Kinsey, ou o seu ponto, n?o houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ?s escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida n?o rod?a a esfera; poder? este trazer mais riquezas e informa??es, mas ? f? que n?o prova mais f?r?as e esf?r?o que o desconhecido nadador de uma s? corrente.

Passemos ?vante, e das descri??es entremos nos affetos. N'esta parte direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo onde entendo merec?-lo, me podia deixar alguma licen?a para tambem me louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que mais facilmente nos pod?mos enganar, nos contentemos de ser ouvintes. Ainda assim, n?o acabo eu de dizer t?o pouco, que muito bem se n?o entenda ja que no tocante a affetos n?o quero muito mal ? minha Obra: fallo dos affetos em geral, porque passos ha n'ella a cujo affeto n?o sei ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que n'esse tempo devia ser meu, porque eu n?o compunha, tirava do cora??o, mas ja o n?o posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar de tudo e de mim, h?o de passar intatos, que em assunto de branduras o eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum dia; e porque tudo diga, ainda que quizera emendar, n?o saberia. Sim me inclino a que haver? excesso, redundancia, languidez em tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos. Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente, p?de ser que o melhor se me figurasse agora pe?r, e o pe?r melhor?

D?mos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, n?o ser? muito que lhe abra sua porta a poesia, e lhe d? guarida em um pobre cantinho t?rreo de sua pousada, como he este: inda mal, que at? c?, no fundo de tamanha escurid?o e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado edificio poetico lhe chegar?? as risadas sem alma nem sal de seus inimigos, e contra essas n?o ha valer-lhe. Ha pois do titulo d'este livro a dentro, dado se n?o prometta sen?o primavera, um como ar de bondade e saude para o animo, de socego e bemaventuran?a para a vida: e por isso he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal, ao baldio s?faro e corruto d'esta idade. Bem estou eu antevendo quantos de mim h?o de haver l?stima, por me assentar no meio de t?o ferida e accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia! tambem sei que homem sentado n?o s?be, nem a tr?co de cantigas se compr?o riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser; oxal? que para sempre! Com o bom de Archimedes me pare?o n'isto, o qual na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava de proseguir na composi??o da lustrosissima esfera celeste, unicos amores que no canto calado de sua casa o desvelav?o. Havia ahi uma n?o sei que magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que despede tal cabe?a para cima de tal obra. Mas quando me ?lho, e me vejo a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim est?o no ch?co t?o grandes destinos do mundo, n?o me lastimo, porem rio-me, e cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade, enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto and?o ? vista gale?es alterosos ? luta com os elementos, e na mesma praia uns pasm?o, outros se aterr?o, outros suspir?o pelo instante do naufragio para se arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.--Fugindo me hi?o agora outra vez os p?s pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida at? por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar.

--"Note-se que este poema est? muito longe de dever ser considerado como did?tico; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo, aonde a licen?a do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica, he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais d?o ao prazer do que ? ras?o; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo. Para os avisados escusada f?ra a nota, mas para os fanaticos, que ignor?o ter a Musa do Dithirambo licen?a para nos seus delirios arremetter contra tudo, he indispensavel."

Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houv?ra sido n?o carecer d'elle; e se ainda por elle se pode perdoar ? republica de Chipre, n?o assim ?s demais desenvolturas, como as dos dois ja apontados episodios. Porque as puz umas e outras? v? mais penitencia. Puz as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n'aquella saz?o da vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em n?o desabafando. Porque n?o expurguei d'ellas esta segunda edi??o? pelo mesmo motivo do retrato, e n?o outro. Quanto ao culto da Natureza, e ? gente nua, e aos maridos de muitas mulheres, s?o necedades taes, que n?o merecem que nos detenh?mos em as refutar: s?o d'aquellas demencias, cujo aggregado d? o que entre mo?os que esfolhe?o livrinhos bem doirados e t?rsos, se denomina filosofia, e que s? dura emquanto a experiencia e o tempo nos n?o desmam?o da presun??o; pelo que, e pela ras?o geral, ja muitas vezes apontada, de querer mostrar-me qual fui, viv?o, durem e passem, que depois d'isto ja a ninguem far?o mal.

Quando todo estava no trabalho de desempenhar minha palavra, e fazer ainda mais do que no Prologo deix?ra promettido, revendo cuidadosamente, afei?oando, podando e enxertando de novo este volume, sobreveio-me aos 2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de minha vida, uma perda de que em nenhum tempo se me poder? o cora??o consolar. Quebrar?o-se-me as for?as para continuar no trabalho, bem como se esvair?o muitos, antes todos, meus projetos. Ja n?o arrancarei este pouco e inutil resto de mim mesmo da terra que encobre a minha melhor metade: aqui procurarei, se tanto pod?r ainda, pagar com uma pouca fama e muitas lagrimas, a quem a mim me deo at? ? sua ultima hora seus olhos, seu amor, toda sua alma. Qual ficou este livro tal sae, e muito inferior ao que eu promettia, podia e devia fazer. Se algum de meus leitores entende por experiencia o que seja padecer n'uma viuvez uma completa orfandade, esse passar? com indulgencia, e ainda suspirando, pelos muitos defeitos que na leitura lhe occorrerem. Aos sem alma n?o tenho que dizer: se quizerem castigar o espirito meio morto, porque n?o p?de mais, fa??o-no, que d?res d'essas n?o achar?? ja em mim lugar nenhum.

EPISTOLA ? PRIMAVERA

DEDICATORIA A MINHA IRM?.

DUAS PALAVRAS DE INTRODU??O

EPISTOLA

Corre a Noite, jaz muda a natureza; Os campos solitarios esmorecem; Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente: De quando em quando a lua desmaiada Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre; E das planicies a extens?o geosa Ora resae e alveja, ora se apaga.

N'esta cabana de grosseiros troncos, Tecido vime e colmo, onde sereno, Vento, e cuidados n?o co?r?o nunca, N'esta onde habita perennal fogueira, E onde he Penate o Genio da hospedagem, Venho entre amigos deslembrar tristezas: Do frio l? de f?ra o ultimo resto Ja o atirei ? chama tragadora. Em ti, Amores meus, em ti s? fallo ? Primavera minha; em ti s? cuido; A ti quero escrever: inda ha bem pouco Em meu passeio a flor das larangeiras, E do sol que hia a p?r-se o extremo raio, C? me der?o de ti saudades tristes.

Desde que ao scetro do raivoso Junho Tu doce com teus Z?firos fugiste, Meu dia estendo em languidos suspiros. A noite em vagos sonhos me afigura Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos: Mal desponta a manh?, mal foge o sono, Desespero-me, lido entre amarguras; Pe?o aos bosques sem folha, aos ermos campos, Aos rochedos de neve, ?s turvas fontes, Ao ceo toldado, aos ares tempestosos, E a toda a natureza, a minha Amada.

"Primavera, onde est?s?" do outeiro exclamo; De valle em valle, de um cab??o em outro, "Primavera, onde est?s?" responde o echo: No prado o guardador, no monte o Fauno, Pelo arvoredo as Dr?ades ? escuta, "Primavera, onde est?s?" depois exclam?o. Emquanto assim fiel, por ti ? Deosa Me desentranho em ais, onde te escondes, Pergui?osa gentil? onde vagueas Bella inconstante que estes ais n?o ouves? Algum Deos namorado, em plaga estranha, Encheria de amor teus olhos livres? Esquecer-te-hi?o, promessas tantas? Sim: que te importa o definhar de um vate? Do vate que te amou, te adora ausente? Tu folgas e elle gema; elle delire, Tu a prados sorris vestindo prados, Rev?s-te, amante nova, em novas flores: Fontes ha tambem l?, que import?o ?stas? De fonte ao claro espelho te engrinaldas; E ufana de encantar sensiveis peitos, Tambem, como entre n?s, por l? dardejas Fogo de amor aos entes insensiveis.

Volta, volta, ? cruel, aos campos nossos. Qual paiz no universo, a n?o ser Pafos, He mais digno de ti? ?por onde achaste Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras, Como ?stas que entre a murta o ceo nos cria? Amantes mais fieis? florestas, rios Namorar-se, mais frescas, mais formosos? Mais doces flautas quando amor ento?o, Aves mais doces quando amor gorg??o? ?A tua Cintra, Elisio dos desejos, Nobre jardim do Oceano, onde folgavas Contemplar na alta noite em mista dan?a Ninfas das ondas, Ninfas das florestas, Assim te desca?o? ja n?o proteges Os c?ros virginaes que ali pass??o Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque? ?Por toda a parte as Gra?as que espairecem; Do aligero esquadr?o trav?ssos brincos, Frechas doiradas em cont?nuo v?o Aqui e ali aos peitos descuidados, E se err?o cora??es, ferindo os bosques, Porque os bosques ali tambem suspir?o, Tudo pois te esqueceo? Volve, ? Querida; Cede, n?o sejas dura, a amor, aos versos.

Desde que te ausentaste ahi pende a lira Nos bra?os nus de um ?lamo sem folhas, A minha lira ao vento abandonada! A lira d'oiro, onde entoei teu Nome, Onde a minha paix?o soou mil vezes Na linguagem dos ceos a teus ouvidos, Ei-la sem honra; os ventos lhe roub?r?o Dos antigos fest?es o esca?o resto! Ao passar com seu gado, e vendo-a muda, Diz suspirando a turba dos pastores: "E'sta a que dava alento ?s nossas festas: Mal haja quem a trouxe a tal desterro!" Dr?ades ternas, que meu canto ouvi?o N?o talvez sem prazer, dizem passando: "O vate emmudeceo longe da Amada!" Mas apenas teus Silfos precursores, C'roados de violetas assomarem Na eth?rea regi?o de nossos climas; Apenas este ceo pezado e turvo Mandar ? terra os ultimos chuveiros; Apenas rebentando as novas folhas Se remo?ar esse ?lamo tristonho, E entre a nova ramage, emtorno ? lira, Can?ada de seguir-te andar pouzando A rolinha estrangeira, e s?cia tua, ? lira despirei do inverno o musgo; E n'ella, de aureas cordas melhorada, S? de ti ch?o, na presen?a tua, Brotarei versos, como brotas flores.

Oh voa, acode a consolar Cibele, Cibele a t?rrea m?i da especie humana, Cibele, amores teus, qual tu Deidade! Se ora a visses! ... do carro verdejante Os rebeldes tuf?es a derrubar?o: Co'a tran?a descomposta, o manto em rios, A altiva c'roa em parte destruida, Nua jaz ? vergonha, ao vento, ? neve. Seu tanto desamparo he m?goa aos filhos: Mas para dar-lhe a m?o, torna-la a Nume, Poder, qual em ti ha, n?o ha nos homens: Do fundo do teu lodo a ti s? chama, Ai, leve-te algum vento as queixas d'ella!

As torrentes sem freio divagando Contra marm?reas pontes indignadas, Investem, choc?o, despeda??o, roj?o Ruinas em monto?s aos fundos mares. As Dr?ades, teu povo e tua gloria, Tremem, oh dor! ao furioso assalto D'Euros, e Notos, e Africos em guerra: A seu brutal furor nenhuma escapa: Crer-se-hia que as pris?es da Eolia furna Para sempre arraz?ra a m?o de Jove. Dr?ades nobres de arvores antigas, Refugio outr'ora das calmosas s?stas; Dr?ades bellas de arvores vaidosas Co'a idade juvenil, verdura e f?r?as, Tem a seus p?s quaes v?timas ca?do. Co'os negros frutos oliveira amiga Baqueou; n?o lhe valeo celeste guarda; E Minerva prant?a o estrago enorme: C?e o pinheiro amedrontando os valles, E Pan, sentado nos troncados restos, Triste espera por ti co'a flauta muda.

?D'esta cabana a rustica fogueira Sabes quem a sustenta? ah! corre, v?a: Cedro, que eu te sagrei, ca?o por terra, E onde brincou favonio estal?o chamas. Mui tarde chegar?s se n?o-te apressas; Do colono e pastor os ais te invoc?o, A mesma natureza he morta quasi!

Que fragor, que trov?o! piedade ? Numes!... Este deu raio, e p?rto.--Outro rebrama!... O Olimpo sobre n?s desaba em fogo! Chl?e, e Amarilis tr?mulas, gritando, Desfeita a rubra c?r em c?r da morte, Enchem de seu terror esta cabana. O' innocentes, miseras pastoras, N?o griteis, n?o tremais; vereis em breve Dissipado este horror nos longes ares; Contra o crime orgulhoso os Deoses tro?o, N?o fere o raio a rusticos alvergues. N?o, n?o me engano, ouv?s como se afasta? Como la vai ja longe? o mais do estrondo Ja he toada v? no v?o dos bosques. Chuva prop?cia em caudalosa enchente Desce na escurid?o; resoa o t?to Com o crebro saltitar das frias gotas: Sibila o vento na vizinha serra. Chl?e a porta fechou: n?s apert?mos O cerco estreito em deredor do fogo. Cantou o gallo esperto: he meia noite! E eu v?lo ainda, e velarei saudoso As horas todas que ? manh? precedem! Horas, horas de paz no horror das trevas; Horas de estro, misterio, omnipotencia Ao que nasceo das Musas bafejado! Sonhe a ambi??o com purpuras, e scetros; Torpe avareza com os inuteis cofres; A vingan?a, fatal a si e aos outros, Cogite embora nas trai??es, no engano, Nos agudos punhaes, no sangue em jorros; Vulgar amante afine, esmere astucias, Com que succumba a t?mida innocencia, E aos la?os venha destramente armados: Eu dando a amor o que se deve ao sono, Em chama pura, porque he tua, ardendo, Al?gro com teu Nome a horrenda noite, A saudade em saudades apascento, E inda ausente, comtigo ausente fallo. Como o perdido em temeroso escuro, Que ao mais leve rumor tr?mulo p?ra, Assacinos agoura em cada tronco, N?o ouza resfolgar, prosegue a medo, Aqui lhe surde a silva, alem penedos, E lhe abrem fauces mil os precepicios, S? tem na aurora esp'ran?a, e mal que ao longe Annuncios d'ella v?, canta e renasce; Serei mais que feliz pois vas ser minha, Mal te sonhar ao longe, ? Primavera.

Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco, Mais do que o touro em maio ama a novilha; Quero-te mais que o Deos de amor ?s trevas, Mais do que Flora ao Z?firo inconstante. Eu suspiro por ti, como suspira Murchada planta por sereno orvalho, E ardente ceifador por fresca fonte: Es-me t?o cara como a bella esposa A seu amante de chorar can?ado, Quando no dia d'hirneneo se abra??o: T?o doce emfim como o primeiro beijo, Que uma terna pastora, a medo e a furto, Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios. Qual dos amores, que no mundo gir?o, He mais grato que o meu? Este em del?cias Excede tanto aos mais, como tu vences, Tu belleza do ceo, do mundo as bellas: Eu amo e para amar n?o me recato, Ao mundo inteiro meu ardor confesso, Tenho rivaes e do ciume zombo, Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorv?o.

Inda me est? lembrando Quando longe do mundo, e a s?s comtigo, Pela primeira vez te disse "Eu te amo!" Abria a Aurora o roxo mez das flores: Juntas em c?ros no arvoredo as aves, De ramo em ramo aos ranchos adejando, Em nunca ouvidos sons a luz saudav?o: Inda do puro rio a opaca nevoa Bem n?o era desfeita ao sol nascido; Inda das folhas concavas pendi?o Tr?mulas gotas de luzente orvalho, Que depois leva o brincador Favonio; Quando eu dei comtigo Inda meia a dormir na fofa relva. N'alguns louros de roda entretecida Hera tenaz um toldo te formava: O melro grave, o rouxinol cadente, Para encantar-te os sonhos, diffundi?o Entre uns rosaes a musica dos prados; Enchia aroma puro os puros ares. Ligeiras, bellas S?lfides, velando Invisiveis teu placido retiro, Impedi?o que um Fauno petulante Ou rustico pastor pozessem olhos Em teu corpo sem v?o, cheio de encantos. Al? me conduzio propicio acazo: N?o mo impedir?o S?lfides zelosas, A natureza inteira he franca ao vate. Ridente sono, da innocencia imagem, Cerrava ainda os olhos teus ao dia: Todo brandura o juvenil semblante, At? sem o saber, at? dormindo, Faria suspirar homens e feras. Entre a face mimosa e a fria relva Tinhas meio curvado o bra?o lindo: Como ao desdem, na esquerda seguravas A cornucopia, a n?o poder com flores: Halito doce de fragancia amena S?e do seio, que t?rgido se eleva; Dos roseos labios, da pequena boca Vem t?o doce, vem tal, que um peito humano Bafejado por elle, excede os numes, E a alma, em vez de pensar, delicias volve.

Tal eras, tal fiquei ? Primavera! Espertaste de todo; e toda risos, E todos luz e amor os olhos verdes, O que era ja sem termo accrescentaste, Dobrou-se a gra?a ao mundo, o fogo aos peitos. Um mar de deleitosas fantasias Me so?obrou, confesso, e tempo largo Jazi com o ledo mundo em bra?os da alma. Depois tornando em mim, v?-te ja prestes Para baixar do outeiro aos amplos valles: Qu?o mais lou??, e em galas mais garrida! ?Que muito, se a mais nova das trez Gra?as, De tuas mil Or?ades servida, Pozera as proprias m?os ao vago enfeite? Er?o-te manto ondado, e roupas simples, Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas; Mas triunfava a rosa! aos bot?es d'ella, Nem ja todos bot?es, nem flores todos, F?ra o t?pido seio em throno dado, E em vez de o embellezar, se ornav?o d'elle: Er?o raios do Sol a c'roa tua!... Parei de embevecido! e quem no mundo Te vio jamais como te vio teu vate? Em teu seio amoroso um Cupidinho, Qual borboleta d'oiro, esvoa?ava De bot?es a bot?es, na escolha incerto. Vio-me; e curto farp??, doirado, agudo, Curto farp?? que os olhos n?o percebem, Me arrojou, me sumio dentro no peito. Gra?as ao tiro do mimoso Alado! Na profundez da f'rida, e g?stos d'ella, Contente reconhe?o, adoro um Nome.

Amante, desde ent?o, ditoso amante, De dia a dia te encontrei mais terna. Incenso, que antes dava a falsas Musas, Off'reci-te, acceitaste, e foste a minha. Abriste-me a Aganippe em cada arroio, Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles: E tu em cada valle, em cada monte, Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre Musa do cora??o, presente aos olhos. De poetas foi sonho a voz das outras, A tua graciosa ciciava, De toda a parte vinha em tom macio, Que filtra inspira??es, e a amor contenta.

Se os de ambi??es miserrimos for?ados Que ?s cidades d?o vida, e a si a roub?o, Podessem vir um dia onde tu reinas! Se a mente que as paix?es lhes anuvi?o, E olhos em que os cuidados, seus verdugos, At?r?o com trez n?s perp?tua venda, Podessem ver-te a luz deliciosa, O manso da alegria, os gostos puros!... Deixando sem adeos tumulto e pompas, Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos, Co'as pouzadas dos bons unirra a sua. E a quem dar?s tu nunca o riso cheio, Como o d?ras a este, que trocasse Oiro a virtude, e marmores a flores? ?Que ja s?lto de si e a si tornado, Viesse p?r, para os livrar de queda E adora-los em ocio, os seus penates ? beira de uma l?mpida corrente, Que de um bosque atrav?z susurra e foge. V?ra os Genios da terra o anno inteiro A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a No pomar curvo, ali na horta regada, L? no ch?o da seara, alem na vinha Que o rec?sto do outeiro alastra e enreda, Mais longe nos cabe?os verdejantes Onde o gado em socego os leites cria. N?o lhe amea??ra o raio o t?to humilde: As manh?s, d'entre as ramas espreitando Pela aberta janella, o acordari?o, Por lhe alargar a vida: os passarinhos Lhe dir?o nas frescas alvoradas "Bem vindo, alegre amigo, ?s nossas casas! N?s cantamos teu Deos, somos felizes, Tu louva o nosso, e goza d'este mundo." Se algum cuidado a vespera deixasse, Levar-lho-hia na v?a murmurante A correntinha onde lavasse o rosto. V? zagalas fieis, v? perigrinas De formosura e joias n?o compradas, ; Com ellas espairece a fantasia, E se inda o cora??o quer mais ventura, Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce! Quanto via e pasmava em mortos quadros, Onde astuto pincel prodigios obra, Sombras v?s, cujo pre?o he rios d'oiro, Tudo agora real, vivo, mais bello, De mais subida m?o pintura immensa, De gra?a lhe cerc?ra o lar e a vida. Mas ah! porque me s?lto em v?s ideas! Embora o pre?o teu n?o saiba o mundo, Primavera, eu te adoro e tu me afagas: Caro co'a lira vezes mil teu nome, E tu me infloras magamente a lira: Em longo m?tuo abra?o almas troc?mos; A minha he mansid?o, frescor, perfume, Toda a tua, poesia, amor, extremos. Lan?as-me em teu rega?o, e quando a noite A lira e cornucopia aos dois nos furta, Das-me dormir co'a fronte no teu seio, D'onde me vem coando uns sonhos leves, Todos teus, todos candidos, na f?rma De flores, de aves, de amorinhos, de auras. Assim, me queres teu at? no sono! E porque sombras m?s o n?o perturbem, Mo ficas a velar ? luz dos astros, O semblante pac?fico ao sereno, Os olhos no ceo da alva, e o peito amores.

Mas tu ... porque n?o vens?--N?o n?o me engano, Inda agora os trov?es rijo batalh?o. Talvez rola n'esta hora a tempestade Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas; Rugindo estoira o mar em crespas serras: Possan?a de baixeis, esf?r?o, industria N?o vale a contrastar-lhe a valentia; De toda a parte a morte esvoa?a, ruge Na horrenda cerra??o com sons do averno; O n?ufrago abra?ado a s?lto lenho, De toda a parte a v?, a ouve, a sorve; Vai a abismos e a ceos repulso d'ambos, E perde, antes da vida, a luz e a mente. Sumio-se o ultimo audaz de s?bre as aguas! De nuvens atro veo submerge a lua; N?o luz na escuridade alguma estrella; He o luto do Homem forte! ? Mar ?s livre! Triunfaste, adormece.--Ah que de vezes Taes scenas, tal horror, maior, mais negro, Nos tem de si brotado a umbrosa quadra! ? tu contr?ria sua, o tu dos homens Sempre invocada amiga, eth?reo Nume, A quem ceo, terra e mar d?o vassallagem, Onde est?s, que n?o vens com um leve assopro Trazer serenidade aos elementos? Se inda ?s a mesma, e s?pplicas te movem, Sobe ao carro da aurora, os ares fende, E acode ao Luso clima, onde te invoc?o.

?Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto, Acceitou, de sincera, a grave aposta? Qual era, que o pastor lhe n?o podia Dar n'uma tarde tantos beijos, tantos, Como as folhas do pl?tano vizinho, Sendo o premio da aposta inda outro beijo? ?Aquella gruta, onde ambos consumir?o Um dia teu, a adivinhar a ponto Todas as gra?as do primeiro filho; E s? no sexo os votos discordav?o, Porque Umbrano pintava outra Amarilis, E Amarilis raivosa um novo Umbrano? Pois n'essa, n'essa gruta os meus amigos Para hospedar-te um gr?o festejo tra??o. P?r-se-ha do cedro ? sombra altar gram?neo Com seus fl?reos list?es, onde c'roados Te libem vinho annoso e leite puro, Concertando himnos teus com lira e flautas. O lavrador da proxima campina, A estirada cantiga aos bois tardios Parando calar?, para escutar-nos.

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