Read Ebook: A Intrusa by Almeida J Lia Lopes De
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Ebook has 3836 lines and 190778 words, and 77 pages
O deputado recolheu as cartas dos parceiros: ganhava o jogo.
--A sabedoria dos proverbios est? sendo compromettida... declarou Argemiro. Voc? prova que a felicidade em amor ? compativel com a do jogo!
Adolpho Caldas accrescentou:
--Leito, tribuna e mesa. Ahi est? um lema conveniente aos teus triumphos, Armindo!
Telles sorriu, respondendo sem disfar?ar a vaidade:
--Leito e tribuna... v?; mas mesa, n?o sei porque!
Caldas, baralhando as cartas, concluiu:
--Mesa, empreguei eu na express?o lata, falando como um diccionario. Referi-me ? mesa do or?amento, ? mesa do baccarat e mesmo ? do jantar. N?o quero fazer-te a injusti?a de supp?r que te alimentas a leite e a agua de Vichy... Come?as a ter pan?a; n?o te p?des rir de mim; e jantaste hoje a meu lado, n?o te esque?as d'essa circumstancia; jantaste como um homem de boa consciencia e magnifico estomago! Fiquei-te considerando mais, depois que te vi comer.
Argemiro observou, rindo:
--? o exercicio da profiss?o!
Armindo Telles respondeu:
--Voc?s confundem-me com o Araujo Braga... que trouxe da pasta a pratica da mastiga??o e leva mesmo a impudencia a ponto de dizer, como disse hontem ? porta do Watson, ? minha vista:--eu hoje s? r?o subsidios e clientes.
--Esse tem, ao menos, o merito da franqueza. A mim ent?o s? me apparecem causas pessimas, clientes j? esfolados, em osso. Se eu n?o tivesse alguns bens, iria esmolar na esquina declarou Argemiro.
O jogo cheg?ra a um ponto que requeria a atten??o absoluta dos jogadores. Ficaram largo tempo silenciosos, olhos fitos nas cartas, s? entreabrindo a bocca para a passagem das express?es obrigadas do poker.
Padre Assump??o continuava a sua leitura, de p?, com o hombro encostado ao angulo da estante. A batina muito escorrida desenhava-lhe o corpo esguio, descendo rente ? moldura do movel, confundindo-se com elle na sombra do aposento.
Os tres jogadores eram de bem differente aspecto. Em contraste ao todo severo do dono da casa, o deputado Armindo Telles alegrava a sala com os tons claros da sua roupa alvadia e da sua gravata escoceza picada por um rubi fulgurante.
Representante do Paran?, que o tinha como um politico habil, presumia conhecer as coisas e os homens do Rio de Janeiro como os da sua terra, onde a familia carpia saudades da sua pessoa airosa e bem tratada. Maleavel, imprimia ao seu jornal de Curitiba as cambiantes politicas do seu partido e a vontade soberana do seu chefe, e dest'arte equilibrava-se na invejada posi??o de representante da na??o. Claro, louro, sem barba, que raspava escrupulosamente, elle apparentava menos edade do que a que tinha realmente. Falava com socego, num agradavel timbre de voz. ?s vezes mesmo Caldas ca?oava:
Assim como a voz elle tinha macio o gesto, que parecia obedecer a um estudo, a que por certo n?o se applic?ra nunca... As m?os, pequenas, mostravam os anneis de pre?o sem se desviarem muito do peito, sempre resguardado por linhos claros e fatos correctissimos.
O Adolpho Caldas dizia-se rio-grandense, mas affirmavam alguns que elle era nascido em Montevid?o, de familia brasileira. Vivia desde os vinte annos no Rio de Janeiro, sempre na boa roda, de financeiros illustres e ministros afamados, chegando-se para as arvores de substanciosos fructos e boa sombra. Solteir?o, intermediario de bons negocios, permittia se o luxo de uma viagem de longe em longe a Paris, cujos museus de quadros conhecia de c?r.
Tinha a paix?o da pintura e lia bons livros portuguezes, classicos sobretudo. Era com elle que o padre Assump??o conversava ?s vezes sobre litteratura antiga, certo de que os bons livros espirituaes, como os profanos, tinham a mesma admira??o no juizo competente d'aquelle homem de t?o experta sagacidade.
Houve uma pequena pausa no jogo; o Feliciano entrou com os calices de Chartreuse. No abrir da porta ouviu-se o barulho da chuva batendo com for?a nos ladrilhos do terra?o, e um arrepio de frio fez voltar-se o dr. Argemiro, que estava de costas para a entrada.
--? Argemiro, onde arranjaste tu este Feliciano? perguntou Caldas, mirando o copeiro, um negro de trinta e poucos annos, esgrouviado e bem vestido.
--Na familia de minha sogra... ? filho da ama de minha mulher.
--Se n?o f?sse reliquia de familia, pedia-t'o para mim.
Feliciano serviu a todos como se n?o tivesse ouvido coisa nenhuma, substituiu por outros os cinzeiros j? repletos e tornou a sahir, silenciosamente.
--Se me n?o engano, observou o Armindo Telles, vi-o outro dia em casa da Lol?ta...
--Ah! tambem voc??...
--Que! ir ? casa da Lol?ta? Mas toda a gente vae ? casa da Lol?ta!
--At? o Feliciano... murmurou Caldas.
--N?o! o Feliciano levava um recado. Ia com uma carta minha, corrigiu Argemiro.
--Por isso ella discutiu leis com tanto apuro! Parabens. ? uma mulher estonteadora...
--N?o sei, a minha carta era ?c?rca de negocios; ella ? minha cliente.
--Homem puro, que nem sabe se as suas clientes s?o ou n?o s?o bonitas! Eu confesso-me peccador impenitente: quando vejo uma saia levanto logo os olhos para v?r se o rosto da dona ? feiticeiro! Tape os ouvidos, padre Assump??o!
O padre sorriu e n?o desviou os olhos da leitura.
--Peccar ainda ? e ser? a coisa melhor da vida, continuou o Armindo; peccado de amor, est? claro. Ah, e neste Rio de Janeiro, por melhor que seja a vontade de resistir, ninguem foge ? tenta??o! Voc? conhece o dr. Aguiar?
--O da Caieira?
--Esse mesmo. Pois quando pretende alguma coisa da camara ou dos ministerios, manda a mulher ?s secretarias ou ? casa dos deputados. A mim procurou-me ella um dia no hotel, e, como o negocio era reservado, tive de falar-lhe no meu quarto. O sal?o estava cheio. Ia linda!
--E?... --O Aguiar entrou numa centena de contos; ali?s a pretens?o era justa; todavia, se a mulher f?sse feia, n?o digo isto por minha parte, creio que elle n?o arranjaria nada. O caso n?o dependia de mim, mas de quem <
Armindo interrompeu o assumpto para sorver um gole de Chartreuse.
O padre Assump??o, talvez para desviar o assumpto mal encaminhado, por achar a proposito o trecho ou para fazel-o notar a Adolpho Caldas, leu alto uma phrase:
<<...um peccado chama outro peccado, e este outro vem logo acompanhado at? crear devassid?o e ficarem em estado de se darem por sem remedio. Miseravelissimo estado que abre as portas de par em par a todo o genero de vicio e apaga toda a memoria do C?o e da Eternidade>>.
Padre Assump??o fechou o volumesinho de Frei Luiz de Sousa, p?l-o na estante e foi sentar-se ao lado de Argemiro.
Estava ? espera de uma estiada para se ir embora; mas a chuva cahia em torrentes fortes e continuadas. Houve um momento mesmo em que a tempestade pareceu recrudescer de furia. Assump??o confessou:
--Estou com medo que o temporal d'esta tarde tenha quebrado a amendoeira do meu quintal...
A partida prolongou-se at? ?s onze horas, em que deixaram os baralhos, e Armindo foi afastar as cortinas para olhar para a rua atravez dos vidros das janellas.
--Chove ainda! E deve estar frio l? f?ra! Parece-me que estou em Curitiba!
Padre Assump??o, voltando-se para o dono da casa, disse:
--Amanh? terei de ir ? casa de tua sogra; queres alguma coisa para a nossa Maria?
Nossa Maria era como o padre chamava a filha de Argemiro, a quem baptis?ra e adorava.
--Nada... eu irei vel-a no domingo.
Quero ver se para a semana ella vem passar uns dois dias commigo.
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