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Read Ebook: Lendas e Narrativas (Tomo I) by Herculano Alexandre

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Ebook has 985 lines and 58165 words, and 20 pages

Que festa f?ra essa que expir?ra algumas horas antes de nascer a lua, e de tingir com a brancura pallida de sua luz aquelles dois vultos enormes de Azzahrat e de Cordova, que olhavam um para o outro, a cinco milhas de distancia, como dois phantasmas gigantes involtos em largos sudarios? Na manhan do dia que find?ra, Al-hakem, o filho mais velho de Abdu-r-rahman, f?ra associado ao throno. Os walis, wasires e khatehs da monarchia dos Beni-Umeyyas tinham vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto ?, futuro kalifa do Andal?s e do Moghreb. Era uma id?a affagada longamente pelo velho principe dos crentes que se realis?ra, e o jubilo de Abdu-r-rahman se havia espraiado n'uma dessas festas, por assim dizer fabulosas, que s? sabia dar no seculo decimo a c?rte mais polida da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno de Hespanha.

O palacio Merwan, juncto dos muros de Cordova, distingue-se ? claridade duvidosa da noite pelas suas f?rmas macissas e rectangulares, e a sua c?r tisnada, bafo dos seculos que entristece e sanctifica os monumentos, contrasta com a das cupulas aereas e douradas dos edificios, com a das almadenas esguias e leves das mesquitas, e com a dos campanarios christ?os, cuja tez docemente pallida suavisa ainda mais o brando raio de luar que se quebra naquelles estreitos pannos de pedra branca, d'onde n?o se reflecte, mas cabe na terra pregui?oso e dormente. Como Azzahrat e como Cordova, calado e apparentemente tranquillo, o palacio Merwan, a antiga morada dos primeiros kalifas, suscita id?as sinistras, emquanto o aspecto da cidade e da villa imperial unicamente inspiram um sentimento de quieta??o e paz. N?o ? s? a negrid?o das suas vastas muralhas a que produz essa apertura do cora??o que experimenta quem o considera assim solitario e carrancudo; ? tambem o clar?o avermelhado que resumbra da mais alta das raras frestas abertas na face exterior da sua torre albarran, a maior de todas as que o cercam, a que atalaia a campanha. Aquella luz, no ponto mais elevado do grande e escuro vulto da torre, ? como um olho de demonio, que contempla colerico a paz profunda do imperio, e que espera ancioso o dia em que renas?am as luctas e as devasta??es de que por mais de dois seculos f?ra theatro o solo ensanguentado de Hespanha.

Alguem v?la, talvez, no pa?o de Merwan. No de Azzahrat, posto que nenhuma luz bruxul?e nos centenares de varandas, de miradouros, de porticos, de balc?es, que lhe arrendam o immenso circuito, alguem v?la por certo.

A sala denominada do Kalifa, a mais espa?osa entre tantos aposentos quantos encerra aquelle rei dos edificios, dev?ra a estas horas mortas estar deserta, e n?o o est?. Dois lampadarios de muitos lumes pendem dos artes?es primorosamente lavrados, que, cruzando-se em angulos rectos, servem de moldura ao almofadado de azul e ouro, que reveste as paredes e o tecto. A agua de fonte perenne murmura cahindo n'um tanque de marmore construido no centro do aposento, e no topo da sala ergue-se o throno de Abdu-r-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes do paiz de Fars. Abdu-r-rahman est? ahi s?sinho. O kalifa passeia de um para outro lado, com olhar inquieto, e de instante a instante p?ra e escuta, como se esperasse ouvir um ru?do longinquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais viva anciedade; porque o unico ru?do que lhe fere os ouvidos ? o dos proprios passos sobre o xadrez variegado, que f?rma o pavimento da immensa quadra. Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do throno, abre-se lentamente, e um novo personagem apparece. No rosto de Abdu-r-rahman, que o v? aproximar, pinta-se uma inquieta??o ainda mais viva.

O recem-chegado offerecia notavel contraste no seu gesto e vestiduras com as pompas do logar em que se introduzia, e com o aspecto magestoso de Abdu-r-rahman, ainda bello apesar dos annos e das cans que come?avam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os p?s do que entr?ra apenas faziam um rumor sumido no ch?o de marmore. Vinha descal?o. A sua aljarabia ou tunica era de lan grosseiramente tecida, o cincto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, por?m, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nelle aquella magnificencia. N?o era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injurias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao p? do kalifa, que fic?ra immovel, cruzou os bra?os e poz-se a contempla-lo calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silencio:

"Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando annuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua ? sempre triste como o teu nome. Nunca entraste a occultas em Azzahrat sen?o para me saciares de amargura; mas apesar disso eu n?o deixarei de aben?oar a tua presen?a, porque Algafir--dizem-no todos e eu o creio--? um homem de Deus. Que vens annunciar-me, ou que pretendes de mim?"

"Amir-al-muminin, que p?de pretender de ti um homem cujos dias se passam ? sombra dos tumulos pelos cemiterios, e a cujas noites de ora??o basta por abrigo o portico de um templo; cujos olhos tem queimado o ch?ro, e que n?o esquece um instante que tudo neste desterro, a d?r e o goso, a morte e a vida, est? escripto l? em cima? Que venho annunciar-te?!... O mal; porque s? mal ha na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos, entre o appetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto ?, entre os seus eternos e implacaveis inimigos!"

"Vens, pois, annunciar-me uma desventura?!... Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado perto de quarenta annos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas ambi??es tem sido satisfeitas, todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira de gloria e prosperidade s? fui inteiramente feliz quatorze dias da minha vida. Pensava que este fosse o decimo quinto. Devo acaso apaga-lo do registo em que conservo a memoria delles, e em que j? o tinha escripto?"

"P?des apaga-lo:--replicou o rude fakih--p?des, at?, rasgar todas as folhas brancas que restam no livro. Kalifa! v?s estas faces sulcadas pelas lagrymas? v?s estas palpebras requeimadas por ellas? Duro ? o teu cora??o, mais que o meu, se em breve as tuas palpebras e as tuas faces n?o est?o semelhantes ?s minhas."

O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pallido de Abdu-r-rahman: os seus olhos serenos como o ceu, que imitavam na c?r, tomaram a terrivel express?o que elle costumava dar-lhes no revolver dos combates, olhar esse que s? por si fazia recuar os inimigos. O fakih n?o se moveu, e poz-se a olhar tamb?m para elle fito.

"Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas p?de chorar arrependido de seus erros diante de Deus; mas quem disser que ha neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma lagryma, diz-lhe elle que mentiu!"

Os cantos da b?ca de Al-gafir encresparam-se com um quasi imperceptivel sorriso. Houve um largo espa?o de silencio. Abdu-r-rahman n?o o interrompeu: o fakih proseguiu:

"Amir-al-muminin, qual de teus dous filhos amas tu mais? Al-hakem, o successor do throno, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sabio e guerreiro Abdallah, o idolo do povo de Korthoba?"

"Oh,--replicou o kalifa sorrindo--j? sei o que me queres dizer. Devias prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os christ?os passaram a um tempo as fronteiras do norte e do oriente. Meu velho tio Al-mod-dhafer j? depoz a espada victoriosa, e cr?s necessario exp?r a vida de um delles aos golpes dos infi?is. Vens prophetisar-me a morte do que partir. N?o ? isto? Fakih, creio em ti, que ?s acceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro n?o hesitaria na escolha: f?ra esse que eu mand?ra, n?o ? morte, mas ao triumpho. Se, por?m, essas s?o as tuas previs?es, e ellas tem de realisar-se, Deus ? grande! Que melhor leito de morte posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed contra os infi?is?"

Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d'impaciencia. Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:

"Kalifa, qual amas tu mais dos teus dous filhos?"

"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder, fakih?"

"E todavia ? necess?rio que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro. Um delles deve morrer na pr?xima noite, obscuramente, nestes pa?os, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo do cutello do algoz, ou do punhal do assassino."

Abdu-r-rahman recu?ra ao ouvir estas palavras: o suor come?ou a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sent?ra apertar-se-lhe o cora??o desde que o fakih come??ra a falar. A reputa??o d'illuminado de que gosava Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais que tudo o haverem-se verificado todas as negras prophecias que n'um longo decurso de annos elle lhe fizera, tudo contribuia para atterrar o principe dos crentes. Com voz tr?mula replicou:

"Deus ? grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim da vida a perpetua afflic??o, a ver correr o sangue de meus filhos queridos ?s m?os da deshonra ou da perfidia?"

"Deus ? grande e justo,--interrompeu o fakih.--Acaso nunca fizeste correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despeda?aste de d?r nenhum cora??o de pae, de irm?o, de amigo?"

Al-muulin tinha carregado na palavra irm?o com um accento singular. Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, n?o attentou por isso.

"Posso eu acreditar uma t?o estranha, direi antes t?o incrivel prophec?a--exclamou elle por fim--sem que me expliques o modo por que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome, seja-me licito dize-lo, ? o terror dos christ?os, e a gloria do islamismo?"

Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a m?o para o throno, e disse:

"Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio, e das vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Successor do propheta, iman da divina religi?o do Koran, escuta-me, porque ? obriga??o tua ouvir-me."

O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que elle rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse com voz presa:--"P?des falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"

Tomando ent?o uma postura humilde, e cruzando os bra?os sobre o peito, Al-gafir o triste come?ou da seguinte maneira a sua narrativa.

Principe dos crentes, titulo correspondente ao de kalifa.

Historico

Guerra-sancta

Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio, e o summo pontificado.

"Kalifa!--come?ou Al-muulin--tu ?s grande; tu ?s poderoso. N?o sabes o que ? a affronta ou a injusti?a cruel que esmaga o cora??o nobre e energico, se este n?o p?de repelli-la, e sem demora, com o mal ou com a affronta, vinga-la ? luz do sol! Tu n?o sabes o que ent?o se passa na alma desse homem, que por todo o desaggravo deixa fugir alguma lagryma furtiva, e at?, ?s vezes, ? obrigado a beijar a m?o que o feriu nos seus mais sanctos affectos. N?o sabes o que isto ?; porque todos os teus inimigos tem cahido diante do alfange do almogaure, ou deixado tombar a cabe?a de cima do c?po do algoz. Ignoras por isso o que ? o odio; o que s?o essas solid?es tenebrosas, por onde o resentimento, que n?o p?de vir ao gesto, se dilata e vive ? espera do dia da vingan?a. Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o cora??o chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia o espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina como ser? facil aos altos entendimentos o encontra-lo! ? por isso que a vingan?a, que parecia morta e esquecida, apparece ?s vezes inesperada, tremenda, irresistivel, e morde-nos surgindo debaixo dos p?s como a vibora, ou despeda?a-nos como o le?o pulando d'entre os juncaes. Que lhe importa a ella a magestade do throno, a sanctidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distancias, calculou as difficuldades, meditou no silencio, e riu-se de tudo isso!"

E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava para elle espantado.

"Mas--proseguiu o fakih--?s vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus servos de animo tenaz e forte, possuido tambem de alguma id?a occulta e profunda, que se alevante, e rompa a trama urdida nas tr?vas. Este homem no caso presente sou eu. Para bem? Para mal?--N?o sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se prepara a ruina do teu throno, e a destrui??o da tua dynastia."

"A ruina do meu throno?--gritou Abdur-r-rahman pondo-se em p? e levando a m?o ao punho da espada.--Quem, a n?o ser algum louco, imagina que o throno dos Beni-Umeyyas p?de, n?o digo desconjunctar-se, mas apenas vacilar debaixo dos p?s de Abdu-r-rahman? Quando, por?m, falar?s enfim claro, Al-muulin?"

E a colera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual impassibilidade o fakih proseguiu:

"Esqueces-te, kalifa, da tua reputa??o de prudencia e longanimidade. Pelo propheta! Deixa divagar um velho tonto como eu ... N?o!... Tens raz?o ... Basta! O raio que fulmina o cedro desce rapido do c?u. Quero ser como elle ... Amanhan a estas horas o teu filho Abdallah ter-te-ha j? privado da cor?a para a cingir na propria fronte, e o teu successor Al-hakem ter? perecido sob um punhal d'assassino. Ainda te encolerisas? Foi acaso demasiado extensa a minha narrativa?"

"Infame!--exclamou Abdu-r-rahman--Hypocrita, que me tens enganado! Tu ousas calumniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue ha-de correr, mas ? o teu. Crias que com essas visagens d'inspirado, com esses trajos de penitencia, com essa linguagem dos sanctos poderias quebrar a affei??o mais pura, a de um pae? Enganas-te, Al-gafir! A minha reputa??o de prudente, ver?s que era bem merecida."

Dizendo isto o kalifa ergueu as m?os como quem ia a bater as palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o menor indicio de perturba??o ou terror.

"N?o chames ainda os eunuchos; porque assim ? que d?s provas de que n?o a merecias. Conheces que me seria impossivel fugir. Para matar ou morrer sempre ? tempo. Escuta, pois, o infame, o hypocrita at? o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que elle ? incapaz de mentir a seu amado pae, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possiveis."

O fakih desat?ra de novo n'um rir tr?mulo e hediondo. Metteu a m?o no peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras de pergaminho: p?-las sobre a cabe?a e entregou-as ao kalifa, que come?ou a l?r com avidez. A pouco e pouco Abdu-r-rahman foi empallidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cahir sobre os coxins do throno, e cobrindo a cara com as m?os, murmurou:--"Meu Deus! porque te mereci isto!"

Al-muulin fit?ra nelle um olhar de girifalte, e nos labios vagueava-lhe um riso sardonico e quasi imperceptivel.

Os pergaminhos eram varias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos cheiks bereb?res, dos que se haviam domiciliado na Hespanha, conhecidos pelo seu pouco affecto aos Beni-Umeyyas. O mais importante, por?m, de tudo era uma extensa correspondencia com Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro celebre e antigo alcaide de Santarem, que por graves offensas pass?ra ao servi?o dos christ?os de Oviedo e Asturias com muitos cavalleiros illustres da sua clientela. Esta correspondencia era completa de parte a parte. Por ella se via que Abdallah contava n?o s? com os recursos dos mussulmanos seus parciaes, mas tambem com importantes soccorros dos infi?is por interven??o de Umeyya. A revolu??o devia rebentar em Cordova pela morte de Al-hakem e pela deposi??o de Abdu-r-rahman. Uma parte da guarda do alca?ar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb ou primeiro ministro do novo kalifa. Alli se liam, emfim, os nomes dos principaes personagens implicados na revolta, e todas as circumstancias desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santar?m com aquella individua??o que nas suas cartas elle constantemente exigia. Al-muulin fal?ra verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de si a longa teia da conspira??o, escripta com letras de sangue pela m?o de seu proprio filho.

Durante algum tempo o kalifa conservou-se como a estatua da d?r na postura que tom?ra. O fakih olhava fito para elle com uma especie de cruel complacencia. Al-muulin foi o primeiro que rompeu o silencio: o principe Beni-Umeyya, esse parecia ter perdido o sentimento da vida.

"? tarde:--disse o fakih.--Chegar? em breve a manhan. Chama os eunuchos. Ao romper do sol a minha cabe?a pregada nas portas de Azzahrat deve dar testemunho da promptid?o da tua justi?a. Elevei ao throno de Deus a ultima ora??o, e estou apparelhado para morrer, eu o hypocrita, eu o infame, que pretendia lan?ar sementes de odio entre ti e teu virtuoso filho. Kalifa, quando a justi?a espera n?o s?o boas horas para meditar ou dormir."

Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre ironica e insolente, e ao redor dos labios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.

A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas cogita??es. Poz-se em p?. As lagrymas haviam corrido por aquellas faces, mas estavam enxutas. A procella de paix?es encontradas tumultuava l? dentro; mas o gesto do principe dos crentes recobr?ra apparente serenidade. Descendo do throno pegou na m?o mirrada de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:

"Homem que guias teus passos pelo caminho do c?u; homem acceito ao propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior ? fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ... Abdallah, o traidor que era meu filho, n?o concebeu t?o atroz designio. Algu?m lh'o inspirou: alguem verteu naquelle animo soberbo as vans e criminosas esperan?as de subir ao throno por cima do meu cadaver e do de Al-hakem. N?o desejo sabe-lo para o absolver; porque elle j? n?o p?de evitar o destino fatal que o aguarda. Morrer?; que antes de ser pae fui kalifa, e Deus confiou-me no Andalus a espada da suprema justi?a. Morrer?; mas h?o-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no abysmo."

"Ainda ha pouco te disse--replicou Al-gafir--o que p?de inventar o ?dio que ? obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferen?a, e at? da submiss?o. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste no seu amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um homem sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o talento de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo. Has-de confessar que se houve com destreza. S? n'uma cousa n?o: em pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ... n?o digo bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria que eu te apontasse ao povo como um impio pelas tuas allian?as com os amires infi?is do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado dos christ?os, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude colligir estas provas de conspira??o. Loucos! as suas esperan?as eram a miragem do deserto... Dos seus alliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla n?o foram um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia, tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de Umeyya, esse ? um segredo que depois de tantas revela??es, tu deixar?s, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os insensatos! os insensatos!"

E desatou a rir.

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