Read Ebook: Alexandre Herculano Conferencia pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa na noite de 15 de Julho de 1900 by Machado Diogo Rosa
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Theophilo Braga manifesta na Historia do romantismo quando nega a Herculano a possibilidade de comprehender a vida politica do povo portuguez pelo facto de ser um christ?o fervoroso e poetico. Mas o distincto escriptor contradiz-se na mesma p?gina quando, para deprimir Herculano, faz os maiores elogios a Agostinho Thierry, que n?o era menos christ?o do que o principe dos historiadores portugueses.
Nenhum escriptor do romanticismo foi apreciado t?o injustamente pelos seus adversarios como Alexandre Herculano, o que para mim ? mais uma prova do seu immenso valor. Herculano, que foi accusado de impio pelos partidarios da reac??o ultramontana e do jesuitismo, tem sido criticado injustamente por alguns escriptores que, declarando-se sectarios do positivismo, est?o muito longe de seguir as pisadas de Taine e de Littr?, dois positivistas eminentes que, pelo seu caracter austero, espirito philosophico e estylo elegante, primoroso, correcto e limpido, se tornaram dignos da venera??o n?o s? da Fran?a mas de todo o mundo. Venero todos os grandes homens, seja qual for a sua escola, porque todos t?m contribuido poderosamente para o progresso; o que detesto ? a injusti?a, a maledicencia e o fanatismo. O critico, para ser eminente, deve p?r a sua consciencia acima de todos os preconceitos, de todo o espirito do partido.
O amor da verdade ? a principal qualidade do historiador. Foi esta qualidade, associada a muitas outras, que fez com que Herculano fosse um dos maiores historiadores do mundo. Eu n?o quero dizer que elle n?o se enganasse, porque isso seria contrario ? natureza humana; n?o ha ninguem infallivel, a n?o ser o padre santo para os partidarios do neo-catholicismo ou do catholicismo influenciado pela Companhia de Jesus. O que ? certo ? que Herculano examinava com a mais profunda atten??o tudo quanto escrevia, empregava todos os meios de n?o falsear a historia, tudo sacrificava ao amor da verdade, fazia fallar os factos, n?o enchia a historia de generaliza??es falsas, intempestivas e absurdas; tudo quanto dizia firmava-se em documentos que elle criticava com a maior severidade e de cuja authenticidade estava profundamente convicto; n?o fazia syntheses que n?o se estribassem na mais profunda e rigorosa analyse. O mais abalisado analysta historico que Portugal tem produzido teve sempre receio de cair nessa labora??o subjectiva, falsa e imaginosa, que caracteriza muitos espiritos do seculo dezanove.
Quantas obras historicas se n?o tem escripto, que, em vez da verdadeira philosophia da historia, nos apresentam a philosophia dos seus auctores! Os trabalhos historicos de Herculano foram incomparavelmente mais syntheticos do que tudo quanto no seu genero se havia escripto anteriormente em Portugal; mas, se a generaliza??o philosophica n?o existe nelles mais copiosamente ? porque ainda se n?o tinham realizado com a amplitude indispensavel as investiga??es eruditas sem as quaes toda a philosophia da historia seria apenas um edificio sem base; ? porque ainda escasseavam os materiaes sufficientes para se poderem fazer em larga escala syntheses profundas, exactas e rigorosas.
Quantas syntheses formuladas no seculo dezanove n?o ser?o materia de riso para o seculo vigesimo! Os escriptores gongoricos e nebulosos, que t?m falsificado a historia com syntheses falsas e temerarias, parecem-se com aquelle fidalgo da Mancha, chamado D. Quichote, que em cada moinho de vento via um gigante, em cada rebanho um grande exercito; no seu furor de generalizar, os modernos gongoristas em cada facto v?em uma lei.
Diz o snr. Theophilo Braga que Herculano n?o possuia disciplina philosophica; eu estou profundamente convicto do contrario. Foi a disciplina philosophica que deu a Herculano o mais excellente methodo no modo de escrever historia; foi ella que fez com que o nosso grande historiador procedesse sensatamente, come?ando pelo exame rigoroso dos documentos, passando ? an?lyse exacta e minuciosa dos factos e por fim ? generaliza??o philosophica, de que elle usou com a devida sobriedade. Os historiadores que, em vez de ter o maximo rigor na investiga??o dos acontecimentos, enchem a historia de syntheses phantasticas e plagiadas, ? que revelam falta de disciplina philosophica.
O methodo seguido por Herculano est? em perfeita harmonia com as doutrinas de um dos maiores luminares da philosophia, o grande Bacon, que sustentava que a generaliza??o se devia fazer vagarosamente, considerando as syntheses feitas ? pressa como um grande obstaculo ao progresso das sciencias e uma causa poderosa da multiplica??o das polemicas.
S? um genio historico verdadeiramente prodigioso como Herculano, poderia realizar em Portugal o que l? f?ra se fez com muito mais elementos. O eminente historiador estava num pais atrazadissimo em estudos historicos e philosophicos, num pais em que uma parte do clero ora roubava documentos ora se recusava energicamente a entreg?-los, num pais em que os monumentos historicos dispersos pelas collegiadas e mosteiros desappareceriam completamente se Herculano os n?o tivesse colligido. P?de alguem, diz Oliveira Martins, avaliar o trabalho do obreiro sem ferramenta nem trabalho s?o?
Neste eloquentissimo parallelo, um dos mais concisos, energicos e claros de todas as litteraturas, mostra-nos Herculano a profunda differen?a que houve entre os fundadores das duas ordens dos franciscanos e dominicanos. O fanatismo do terrivel S. Domingos de Gusm?o foi por elle estigmatizado num estylo vigorosamente poetico; o facto da igreja ter posto este homem feroz, cruel e sanguinario no numero dos santos n?o impediu Herculano de pint?-lo com toda a fidelidade.
Herculano era da maxima tolerancia para com aquelles cujas opini?es divergiam das suas; n?o admittia restric??es para a livre manifesta??o do pensamento. Foi um catholico liberal como o celebre historiador e theologo allem?o Doellinger, que fazia d'elle o mais alto conceito e o admirava enthusiasticamente, consultantando-o sobre muitos pontos historicos e chegando a occupar-se, nos Annaes historicos de Munich, da vida e obras do nosso eminente prosador, a quem fez os maiores elogios. Na quest?o religiosa, Doellinger, o grande historiador da igreja, um dos mais profundos theologos da Allemanha, desempenhou um papel semelhante ao de Herculano; foi o denodado campe?o do partido dos velhos catholicos allem?es, que ousaram arrostar as furias de Roma; como escriptor e lente de theologia, exerceu um grande prestigio no seu pais, combatendo energicamente as novas modifica??es feitas no christianismo e procurando assim desviar a mocidade catholica allem? da influencia nefasta dos jesuitas; por isso era mal visto em Roma, era detestado pelo partido jesuitico, pelos sectarios do neo-catholicismo.
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Herculano foi inimigo acerrimo da hypocrisia e do fanatismo; o seu culto era incomparavelmente mais interno do que externo; pela contempla??o da natureza ? que elle principalmente se elevava ? id?a de Deus.
Herculano, com a sua cren?a religiosa, ficou profundamente impressionado pelos estragos que a Companhia de Jesus fazia no christianismo; por isso mostra-nos, em muitas das suas paginas immortaes, qu?o perigosa ? para o futuro da nossa patria essa sociedade fundada no seculo dezaseis por Santo Ignacio de Loyola e cujas intrigas obrigaram a sair de Portugal os lentes mais distinctos da Universidade de Coimbra. Na prosa mais poetica e viril que nos apresenta a nossa litteratura, expoz e criticou os factos mais interessantes da historia do ultramontanismo; com a sua vista de aguia previu os progressos que o jesuitismo havia de fazer em nossos dias.
? o poder da igreja t?o pequeno que se n?o devam combater com a maxima energia as suas doutrinas contrarias ao bem social? Tem porventura o jesuitismo t?o pouca for?a que se deva considerar um elemento desprezivel? N?o tem a Companhia de Jesus progredido assombrosamente no nosso pais? N?o est?o os collegios jesuiticos repletos de alumnos? Leibnitz, um dos genios mais vastos e profundos n?o s? da Allemanha mas de todo o mundo, disse muito sensatamente: <
N?o ha escripto algum em que Herculano tivesse combatido o casamento catholico; pelo contrario, elle admittia duas especies de casamento: o catholico e o civil. O que repugnava ao seu espirito profundamente liberal e tolerante ? que os individuos que n?o acreditassem no catholicismo se vissem obrigados a receber o sacramento do matrimonio, a praticar um acto contrario ao seu modo de pensar e que elle considerava um verdadeiro sacrilegio, uma offensa ? religi?o. Se Herculano era um velho catholico, se elle estava convicto de que o sacramento do matrimonio remontava aos primeiros seculos do christianismo, como procedeu o grande historiador contra as suas opini?es casando-se catholicamente? Herculano nunca defendeu leis que prohibissem a qualquer individuo o seguir as suas cren?as, tinha o mais profundo respeito pela liberdade de consciencia, era inimigo de todas as violencias feitas ao espirito humano, queria liberdade para todos, n?o era intolerante como os hypocritas da liberdade, que n?o respeitam a consciencia alheia. Herculano sustentou que devia existir um registo civil especial para os casamentos dos n?o catholicos, n?o admittindo que os nubentes fossem interrogados ?cerca das suas cren?as religiosas, o que, segundo a sua opini?o, seria um attentado contra a liberdade de consciencia, um processo verdadeiramente inquisitorial. Quanto ao casamento catholico, considerava-o debaixo de dois aspectos: como sacramento e como contracto. Estando num pa?s, cuja maioria era constituida por catholicos, admittia que o registo ecclesiastico servisse de registo civil. Era assim que o grande historiador procurava conciliar o principio sacrosanto da liberdade de consciencia com o respeito ? religi?o do estado. Sejam quaes forem as opini?es ?cerca das doutrinas sustentadas por Herculano relativamente ao casamento civil, ? incontestavel que n?o ha fundamento algum para se affirmar que o seu casamento catholico esteve em contradic??o com as suas id?as.
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Herculano foi de uma coherencia admiravel nas opini?es religiosas, philosophicas e politicas que manifestou em toda a sua vida. S? quem interpretrar mal as suas palavras poder? affirmar o contrario. O seu espirito, que amava ardentemente a luz, nunca deixou de progredir.
Diz o sr. Theophilo Braga que foi o ataque do clero por causa da suppress?o do milagre de Ourique que fez com que Herculano de catholico ferrenho se tornasse um christ?o semi-deista; isto est? de accordo com o que tenho ouvido dizer a alguns padres, relativamente aos escriptos em que Herculano condemna a proclama??o dos novos dogmas da infallibilidade do papa e da immaculada Concei??o de Maria. Tudo quanto dizem os adversarios de Herculano a este respeito ? completamente falso: nem s?o capazes de apresentar prova alguma em favor de tal asser??o.
O caracter de Herculano foi muito superior ao do padre Lamennais, que, tendo defendido com muita eloquencia, no seu <
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Ninguem em Portugal ainda defendeu com tanta eloquencia o espiritualismo christ?o como Herculano, mas ? principalmente debaixo do aspecto pratico que elle o considera; pode-se at? affirmar que Herculano foi um dos escriptores mais positivos que Portugal tem produzido em todos os seculos: ? pelo lado pratico, ? baseando-se em factos que elle encara especialmente todas as quest?es religiosas, philosophicas e politicas; por isso a convic??o que produz no animo dos leitores ? profundissima; sem se engolphar nas mais transcendentes abstrac??es metaphysicas, que muitas vezes s?o inuteis, nem cair nas syntheses abstrusas e nebulosas, que falsificam o criterio, analysa os factos com tal clareza e severidade, que neste ponto ainda ninguem o excedeu nem egualou em Portugal; n?o se deixa arrastar pela imagina??o como alguns positivistas; possue no mais alto grau uma qualidade bastante recommendavel: o bom senso.
Herculano pouca importancia ligou ? discuss?o ?cerca da parte dogmatica do christianismo; o que lhe attrahiu principalmente a atten??o foi a moral christ?. Sejam quaes forem as opini?es ?cerca d'esta materia, o que ? certo ? que nenhum critico sensato p?de contestar a Herculano a pureza das inten??es. O grande escriptor prentendia fazer d'este povo um povo simultaneamente instruido e moralizado.
< < Estes periodos eloquentissimos provam claramente que, antes de ser aggredido pelo clero, j? Herculano admittia o principio da immutabilidade da f?; era em virtude d'este principio que elle, sem condemnar a philosophia e a consciencia, que tambem considerava fontes das boas ac??es, dava a preferencia ? religi?o como instrumento de moralidade. Na carta que Herculano escreveu ?cerca da suppress?o das conferencias do Casino encontra-se o seguinte trecho, que revela a sua grande e admiravel coherencia e onde censura o papa e os bispos catholicos n?o s? pela profunda modifica??o que fizeram nas doutrinas da igreja primitiva mas tambem pela condemna??o dos principios sacrosantos da liberdade: < Neste trecho energico e ao mesmo tempo graciosamente satyrico revela-se o espirito logico e intransigente de Herculano; n?o ha ninguem que seja capaz de provar que entre as id?as nelle expendidas e as cren?as religiosas da sua mocidade existe o menor antagonismo. Herculano permaneceu fiel ao velho catholicismo; foi a igreja quem introduziu novidades na religi?o; foi ella quem deixou de observar a maxima da immutabilidade da f?, que Herculano considerava sacrosanta, e que durante muitos seculos foi seguida pela grande legi?o dos var?es illustres da igreja, como S. Boaventura, S. Jeronymo e muitos outros; por consequencia foram os padres obedientes ao pontifice que se afastavam das doutrinas da igreja primitiva. O Espirito Santo illuminou o papa e este obrigou os fieis, sob pena de excommunh?o, a acreditar em dogmas que d'antes n?o existiam e sem os quaes se podia muito bem entrar no ceu. Os padres chamavam hereje a Herculano mas este, por sua vez, considerava heresias todas as novidades introduzidas na religi?o catholica. Pio nono era para elle um verdadeiro hereje, um inimigo acerrimo do christianismo puro, um instrumento da Companhia de Jesus. Com effeito, o que ? a egualdade perante a lei sen?o uma traduc??o da egualdade perante Deus, proclamada no Evangelho? N?o s?o porventura os povos christ?os que caminham na vanguarda do progresso e da civiliza??o? O que t?m produzido as outras religi?es sen?o a tyrannia e o despotismo? Que culpa tem o christianismo de que os padres o tenham adulterado e falsificado? Ha porventura alguma compara??o entre os padres da igreja primitiva, que pr?gavam a liberdade de consciencia e a tolerancia, e os modernos jesuitas e lazaristas, que, em vez de explicarem ao povo as maximas sublimes do Evangelho, fazem consistir a religi?o principalmente nos exercicios de devo??o externa? Poeta e philosopho ao mesmo tempo, Herculano era profundamente melancolico. Como Bernardin de Saint-Pierre e Rousseau, amava ardentemente a natureza. Como S. Jeronymo e S. Basilio, era apaixonado pela solid?o campestre; comprazia-se em viver longe do bulicio dos homens. O amor do infinito, que abrasava o cora??o de Santo Agostinho, tambem incendiava o cora??o de Herculano. Alexandre Herculano foi um dos principaes representantes da alma portugueza. A tristeza, que tem caracterizado o povo portugu?s em todos as epochas, tambem caracterizava a grande alma de Herculano. O celebre critico Villemain diz que o portugu?s era reflectido e melancolico antes da epocha em que todos os povos o deviam ser. Esta medita??o melancolica, que nos distingue dos outros povos meridionaes e nos assemelha aos povos do norte, revelou-se muito cedo na nossa litteratura. N?o ?, por?m, s? na vigorosa express?o da melancolia que Herculano ? um dos mais notaveis representantes da alma portuguesa; tambem o ? na poderosa energia com que exprime todos os sentimentos nobres e elevados. O amor, a coragem, o patriotismo e a generosidade s?o affectos caracteristicos do povo portugu?s; Herculano exprimiu-os de um modo verdadeiramente assombroso. O sentimento de dignidade pessoal era egual em ambos os escriptores. Cam?es nunca lisonjeou os poderosos no meio das maiores priva??es; Herculano nunca fez o minimo sacrificio da propria consciencia, foi sempre amigo da verdade e da justi?a. Em ambos brilhou o patriotismo no mais alto grau. Em Cam?es exerceu uma impress?o dolorosa o desastre de Alcacer-Kibir; Herculano soffreu profundamente com o progresso da nossa corrup??o moral e com a nossa decadencia politica. Cam?es, numa carta que dirigiu a D. Francisco de Almeida quando Portugal estava proximo a perder a sua independencia, escreveu: <> Herculano, pouco antes da sua morte, profundamente sensibilizado pela decadencia moral e politica do seu pais, exclamou: < < <<--Mo?o alcaide, mo?o alcaide! bradou o arauto, teu pae captivo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, adiantado da Galliza pelo muito excellente e temido D. Henrique de Castella, deseja falar comtigo, de f?ra do teu castello.
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